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Críticas

Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe

O momento atual por que vivemos (obviamente isso é válido para qualquer momento na história… – em toda história humana) é assaltado por acontecimentos EXTREMAMENTE complexos, delicados, melindrosos, atordoantes, que desafiam nossa capacidade de compreensão, de busca de entendimento racional, e nos mergulham na profundeza das trevas, no horror a que o sentido de humanidade se vê afrontado (malgrado o otimismo kantiano e sua […]

Por Humberto Silva | 24.11.2025 (segunda-feira)

O momento atual por que vivemos (obviamente isso é válido para qualquer momento na história… – em toda história humana) é assaltado por acontecimentos EXTREMAMENTE complexos, delicados, melindrosos, atordoantes, que desafiam nossa capacidade de compreensão, de busca de entendimento racional, e nos mergulham na profundeza das trevas, no horror a que o sentido de humanidade se vê afrontado (malgrado o otimismo kantiano e sua À paz perpétua, no distante ano de 1795).

As ações do grupo palestino Hamas em outubro de 2023 e a reação do Estado de Israel é uma das tragédias chocantes de nossos dias, que nos inunda com noticiários escabrosos e que, como outras, além do desatino da guerra em si mesma, nos faz ver como a desgraça de uma situação alimenta o que o pensador francês Guy Debord denominou como Sociedade de espetáculo.

A “espetacularização” da guerra por meio de imagens (a guerra do Vietnã de algum modo é cartão de visitas), e esse não deixa de ser um dado terrível que não se pode por embaixo do tapete ao vermos o “documentário” Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe (FRA, 2025) , da diretora e ativista política iraniana Sepideh Farsi, atualmente estabelecida em Paris (ela está proibida de voltar ao Irã).

A primeira coisa que me assombra ao ver um filme assim é, na condição confortável e protegida para escrever, a de responder à imensa maioria das vezes se uma obra fílmica se presta a manifestação de gosto.

Em muitos casos, e nesse filme de Sepideh Farsi para mim isso é notório, expressar “gosto” é uma atitude moral que traduzo como “mau gosto”, pois desconfio do juízo moral de quem fizer uso do verbo “gostar” para afirmar ou negar o impacto das imagens de Guarde o Coração… com o pressuposto embutido de ter ou não gostado do que viu – para esse filme não cabe afirmação assim: a simples alusão a “gostar” ou “não gostar”, que pode ser entendida pelo subterfúgio de prescrições “corretas” para filmagens “mal feitas”, é indício de “mau gosto”.

Tenho presente com isso célebre texto de Jacques Rivette, Da abjeção, publicado na edição 120 da Cahiers du Cinéma em 1961, sobre o uso de travelling numa cena de suicídio em Kapò – uma história do holocausto (1960), de Gillo Pontecorvo.

Bem, mas o que fez então Sepideh Farsi para tratar da guerra entre Israel e o Hamas (o povo palestino…) em Guarde o Coração…? Ela manteve diálogo por meio de vídeochamadas em rede social com uma jovem palestina, Fatma Hassona, que lhe fora apresentada por um amigo no Cairo. Sua intenção manifesta era a de saber como alguém anônimo estava sobrevivendo em Gaza frente aos bombardeios de Israel. Assim, durante cerca de um ano Sepideh se conectou com Fatma e desse encontro virtual recolheu imagens, realizadas de modo caseiro e tão improvidas quanto possíveis, editou-as e fez Guarde o Coração…, que foi exibido na Mostra ACID Cannes (Mostra paralela ao Festival de Cannes organizada pela Association for the Diffusion of Independent Cinema).

Fatma, amante de fotografia, fotografou e filmou os efeitos de destruição como resultado dos ataques de Israel no entorno do abrigo em que ela e sua família tentavam se proteger. Para Sepideh, Fatma seria “meus olhos em Gaza”. Por meio de fotos, vídeos, mensagens, ela “transmitiria a realidade de Gaza, vivida de dentro”.

Ocorre que, na montagem de Guarde o Coração…, os olhos de Fatma para a guerra, ou a câmara que apontava para o que ela via, compõem uma fração diminuta do filme: exibem quase que exclusivamente algumas cenas de destruição, caos e movimento a esmo de pessoas ao lado de ruinas, escombros.

O que se vê de fato – “meus olhos em Gaza” –, em quase duas horas de filme, em enquadramento fechado, são os olhos de Fatma. Em seus olhos, um misto de estado de choque, uma réstia de esperança quanto ao final da guerra, a expressão de que nas circunstâncias terríveis em que se encontrava a decisão de “por a alma na mão e seguir em frente”, o que para mim traduz melhor o título original do filme: Put Your Soul on Your Hand and Walk.

O que, de qualquer forma, deve chocar o espectador é saber que, ao saber que o filme seria exibido em Cannes, Fatma e toda sua família morreram no dia seguinte, depois de um bombardeio de Israel no abrigo em que ela se encontrava.

Negar o malfazejo SPOILER aqui, que tantas vezes gera discussões tolas para um assunto sério, é dar as mãos ao mal-caratismo publicitário que toma a tragédia como espetáculo midiático na sociedade de consumo. Para o que é sério, o fim trágico de Fatma e sua família em Gaza, mencionar uma palavra que convém a interesses de mercado é leviano, coloca o trágico no nível do entretenimento em horas de lazer. Certo tipo de cinema, à medida que se propõe a abordar um tema a que não cabe diversão, não deve comportar discussão tola sobre SPOILER.

Nos termos da sociedade de espetáculo, da fetichização da forma-mercadoria (para aludir ao velho barbudo), Guarde o Coração… pode ser, pois não, tomado como mais um “espetáculo” para horas de diversão e se exigir por exemplo que seria um filme “melhor” se sua montagem, se o aparato técnico com sua realização, tivesse tais e tais cuidados, se não revelasse “defeitos” tais e tais, se Sepideh conversasse com Fatma como se estivesse com uma pauta prévia para  abordar uma destacada liderança do Hamas. E assim tivesse em vista não uma jovem entre tantas na multidão, de algum modo sob fogo cruzado, mas alguém com envolvimento direto nas ações do Hamas e com um entendimento político das nuances, estratagemas, decisões que estão em jogo no campo de batalha.

Só que, não imagino Sepideh tenha em vista Godard à época do Dziga Vertov, a importância do cinema para quem toma nas mãos uma câmara para retratar uma realidade política no EXATO momento em que ela efetivamente acontece está em “não fazer filmes políticos, mas em fazer politicamente filmes políticos”. Se Sepideh não teve essa máxima godardiana em vista, foi assim que vi Guarde o Coração… Fazer politicamente no caso é assumir riscos, pois o assunto, não nos esqueçamos, a causa palestina, é complexo, delicado, melindroso, atordoante. A esse respeito, a causa palestina, para concluir, Godard fez Aqui e acolá (1975), com o qual não escapou à acusação que lhe foi feita de antissemitismo.

 

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