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Digital

A Noite que Mudou o Pop

Documentário revive os fascinantes bastidores de ‘We are the world’

Por Renato Felix | 02.02.2024 (sexta-feira)

Em 29 de janeiro de 1985, 46 estrelas da música estadunidense passaram a madrugada juntos gravando uma música destinada a arrecadar fundos para ajudar a combater a fome na Etiópia. O que saiu daquele estúdio em Los Angeles foi a histórica “We are the world”, composição de Lionel Ritchie e Michael Jackson, entoada por vozes como Stevie Wonder, Bob Dylan, Tina Turner, Ray Charles, Paul Simon, Bruce Springsteen, Willie Nelson, Dionne Warwick, Cyndi Lauper, Diana Ross e muitos outros, além dos dois compositores, cantando às vezes meio verso ou só fazendo parte do coro. A operação para reunir e organizar esse exército de talentos e egos é contada no documentário A Noite que Mudou o Pop, que estreou na Netflix esta semana.

O título brasileiro talvez exagere, na medida em que se pode discutir em que exatamente “We are the world” mudou o pop. Mas o título original The Greatest Night in Pop (“a maior noite do pop”) não está longe da verdade. O tamanho do empreendimento artístico é impactante e o documentário mostra a complexidade dessa logística e o esforço para dar vida à canção através de depoimentos retrospectivos de quem estava nos microfones e nos bastidores e de preciosas imagens da gravação que registraram os ajustes, os erros, o cansaço, as inseguranças, as repetições, o método, e a concentração do talento de cada um nos poucos segundos em que teriam algum protagonismo na canção.

A Noite que Mudou o Pop” segue a tradição recente de documentários musicais, apresentando imagens de arquivo belamente restauradas.

A inspiração veio da iniciativa Band Aid, que reuniu no ano anterior nomes britânicos e irlandeses como Sting, Phil Collins, Bono, o grupo Duran Duran, George Michael e Boy George, entre outros. O cantor, ator e ativista Harry Belafonte teve a ideia de fazer algo semelhante nos Estados Unidos, pediu ajuda ao empresário e produtor Ken Kragen, convocou Lionel Ritchie e este chegou a Quincy Jones para produzir e a Michael Jackson para compor com ele a canção. Como reunir tantos astros, cada qual com sua agenda, era um problema até que resolveram aproveitar a cerimônia do American Music Awards, onde vários deles já estariam, para emendar a gravação depois.

O filme conta bem esses preparativos, a organização e a expectativa. Felizmente tudo foi bem registrado na época. É curioso ver os carros chegando ao estúdio. E naturalmente a maior parte de A Noite que Mudou o Pop é dedicada ao processo de gravação em si. Quincy Jones escreveu à mão e colocou na entrada do estúdio o aviso “Deixe seu ego na porta” e colocou todos para cantar juntos, olhando uns para os outros. É fascinante ver o processo de criação coletiva acontecendo, envolvendo tantos nomes. Michael Jackson indeciso sobre uma palavra da letra, Stevie Wonder querendo adicionar palavras em suaíli e gerando um impasse, Bob Dylan inseguro sobre como cantar, Al Jarreau meio bêbado, o suspense contínuo sobre a presença ou não de Prince (a cantora Sheila E. mostra ressentimento por ter sido convidada para o projeto apenas por estar na banda do cantor, para facilitar a ida dele) e por aí vai.

Em ‘A Noite que Mudou o Pop’, além de retratar um momento histórico para a música, destaca-se ao exibir o processo de criação da icônica ‘We Are the World’.

Documentários sobre um momento específico na história de artistas, apoiados em imagens de arquivos recuperadas e restauradas que se revelam um verdadeiro tesouro, começaram a se tornar mais comuns. A série The Beatles – Get Back (2021), sobre a gravação do disco Let it Be, em 1969, é o maior expoente, mas no Brasil tivemos Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você (2013), sobre a gravação do disco Elis & Tom, de 1974, além de Uma Noite em 67 (2010), sobre a noite da final do Festival de Música Popular Brasileira daquele ano. Todos têm o mérito de ser reveladores ao se concentrarem em momentos específicos de grandes artistas mais do que na amplitude de suas trajetórias.

A Noite que Mudou o Pop vai mostrando o passo a passo da gravação. O refrão, primeiro. Depois, duplas e trios na sequência da música. Em seguida, os solos e improvisos que marcam a parte final da canção. Nesse ponto, embora o filme seja tão detalhado até o momento e mostre com destaque como foram gravadas as partes de Dylan e de Springsteen, não há nenhuma menção à participação aí de Stevie Wonder (em dueto antológico com Springsteen) e solo de Ray Charles, absolutamente marcantes. Eles gravaram depois, em separado?

O espectador fica sem saber. Ele também é privado desse momento porque o filme, por alguma razão, não encerra com o clipe completo. A música entra nos créditos finais, sobre ótimas fotos dos artistas naquela noite, e, mesmo assim, seus 7 minutos são editados. Mas, enfim, a música e o clipe estão aí disponíveis no YouTube, de qualquer maneira. Histórias como Stevie Wonder ao piano ensinando a Bob Dylan como cantar sua parte – e imitando Dylan pra isso – é o que o documentário nos traz.

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