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Críticas

Uma Baía

A poesia que brota do movimento das águas da Baía de Guanabara

Por Paulo Henrique Silva | 18.04.2024 (quinta-feira)

Rio de Janeiro, a capital, surge lá no horizonte, com seus cartões-postais. A imagem sempre busca a cidade como uma realidade distante, de uma beleza utópica – só enxergamos contornos e luzes. É muito diferente do que vemos do lado de cá, do outro lado da baía de Guanabara: a partir de sua simplicidade e pobreza incontornável, materializa-se um outro tipo de beleza, formada por água, terra e gente.

O trabalho de câmera que Murilo Salles realiza em Uma baía, em cartaz nos cinemas, constrói uma poesia visual que dispensa palavras e os chamados talking heads – documentário calcado em depoimentos formais. A não ser por um letreiro em algarismos romanos, o filme não se preocupa em detalhar os locais, os nomes das pessoas e o que elas representam para aquele lugar.

A água, a terra e o povo: elementos essenciais para a poesia trazida por ‘Uma Baía’.

Salles promove um processo de descoberta que carrega um ritmo próprio, em que as coisas tomam o primeiro plano. Logo na cena inicial, somos apresentados a um artefato que só teremos noção completa mais adiante – uma espécie de amortecedor entre a embarcação e o cais. É a maneira de ver que conta e que traz um significado especial a um lugar tão importante para o funcionamento do centro quanto invisível.

O artefato, assim, ganha representatividade, como essas bordas que evitam o atrito. De fato, não há atrito entre o Rio de Janeiro e o resto. Eles estão interligados pela ponte extensa, mas o acesso não existe. Ou, ao que parece, um contato que não aparenta ser do interesse de quem vive nesses arredores, como Ilha do Governador, Jurujuba, Maré, Niterói, Paquetá, São Gonçalo e Ypiranga.

Não há atrito entre a exuberância da metrópole e o “outro lado”, porque o primeiro é só uma imagem longínqua. Há sim uma vida pulsante e incessante no entorno, com Salles buscando registrar uma jornada que, não raro, envolve o ciclo de um de seus residentes. A câmera percorre esses espaços como quem quer dar um sentido que não é o da luta de classes, como normalmente se vê nesse tipo de produção.

A observação paciente realizada por Salles alcança não apenas a exuberância da paisagem, mas também a dimensão humana que lida com ela diariamente.

Pode ser entendido como o retrato da subsistência, mas as pessoas não se movem, no filme, por essa situação econômica e social. Elas têm seus objetivos pessoais e desejos, estampados principalmente no personagem que, incansavelmente, monta um hidroavião com latas de cerveja, garrafas pet e pedaços de isopor. Todos estão em seu local de trabalho, dedicados e concentrados.

Estão na contramão da ideia de um brasileiro pobre, preguiçoso e malandro, presentes no discurso da elite desde o século XVI, nomeando assim os negros escravizados. A imagem que Salles exibe em Uma baía” é de um povo como motor que faz funcionar a Capital Maravilhosa, como se fosse Oz, com a ponte sendo a estrada de tijolinhos amarelos que apenas nos conduz para uma projeção ilusória de conquistas.

NOTA DO EDITOR: No Recife o filme está em carta no Cinema da Fundação/Porto

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