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Críticas

A Vida Sonhada dos Anjos

Erick Zonca prova que os fracassados também sonham

Por Luiz Joaquim | 01.03.2018 (quinta-feira)

–Publicado originalmente em 27 de Novembro de 1999 no Jornal do Commercio (Pernambuco)

“De vez em quando é bom falar dos fracassados”, já dizia Fred 04. O diretor Erick Zonca foi mais longe e fez de seu primeiro filme, A Vida Sonhada dos Anjos (La Vie Rêvées des Anges, França, 1998), uma bela radiografia de “gente que não faz diferença” de acordo com os impiedosos dias de hoje.

Como se não bastasse, Zonca ainda traz à tona, com leveza e seriedade, as controvérsias que circundam toda a intensidade da juventude. O filme estréia hoje no Cinema da Fundação. A história é levada pelos passos de Isa (Élodie Bouchez, atriz de Rosas Selvagens) e Marie (Natacha Régnier). A primeira é uma andarilha de 21 anos, sem origem ou destino, que chega à cidade de Lille.

Quando começa a trabalhar numa fábrica de costura, torna-se amiga de Marie, com quem vem a dividir o apartamento. Elas são proporcionalmente inseparáveis e incompatíveis. E é do antagonismo da personalidade (construída de forma exímia) dessas duas jovens que nascem todas as situações magnéticas de A Vida Sonhada dos Anjos.

Se, de uma lado, Marie se mostra egoísta, Isa apresenta uma rara e genuína generosidade. Enquanto Marie acha, equivocadamente, que sabe o que quer, Isa consegue realizar e realizar-se com seus desejos despretensiosos. À medida em que Marie vai nos apresentando sua auto-suficiência, Isa revela mais e mais sua facilidade em compartilhar as coisas e fazer novos amigos. E se para Marie viver é um fardo, para Isa viver é… viver.

O que presenciamos a partir das personagens de Erick Zonca é o surgimento da maturidade e da desilusão em duas garotas sem rumo na vida. Quando ele opta por hierarquizar esse aspecto a despeito de supertramas confusas e ininteligíveis, acaba por aproximar o público das suas personagens. Quando ele prefere a liberdade e a naturalidade à formalidade técnica de filmar, também torna mais verossímeis os problemas de Marie e Isa.

Aqui, o que interessa é o significado do que o diretor quer mostrar a partir da atitude de suas meninas. Em determinada seqüência, o amante de Marie encontra Isa na cozinha. Sem que nenhuma palavra seja verbalizada, sabe-se exatamente o que um tem a dizer ao outro. Essa magia, de como sugerir que o espectador elabore a fala que daria ao personagem na tela, não está no índice das cartilhas dos roteiristas hollywoodianos.

Figuras secundárias também fazem diferença no filme de Zonca. É o caso do leão-de-chácara Charly (Patrick Mercado), que tem tanto afeto no coração quanto volume em seu corpo. Talvez o único personagem monocromático do filme seja o amante filhinho-de-papai de Marie. Ele é apresentado como um imbecil sem salvação que pode arranhar todo o esmero com que o roteirista construiu a estrutura das outras figuras, destituídas de maniqueísmo.

Ao contrário de O Sexto Sentido, o último instante de A Vida Sonhada dos Anjos não é revelador, mas apenas provocativo. É uma seqüência simples na qual aparece uma série de operárias trabalhando numa fábrica. E apenas com essa modesta tomada, Erick Zonca sugere que qualquer uma daquelas `fracassadas’ pode ser um anjo que sonha.

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