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Críticas

Batem à Porta (texto #2)

O verbo encarnado.

Por Yuri Lins | 02.02.2023 (quinta-feira)

M. Night Shyamalan é um realizador de difícil apreensão. Para os cinéfilos que aprenderam a amar o cinema a partir dos realizadores americanos surgidos nos anos 1990, ele sempre foi a figura do autor completo, aquele cuja obra poderíamos acompanhar tal qual um cinéfilo dos anos 1950 ou 1960 alimentavam-se dos filmes de Hitchcock ou Rossellini, assistindo-os no calor de seus lançamentos ou em revisões.  Todavia, sua obra é marcada por  seus erros e acertos, desvios e reencontros, oscilações que foram capazes promover uma adesão  apressada condicionada pela grife do autorismo; adesões a filmes em que o que se sobressaia eram os seus cacoetes conceituais, seus gimmicks que dissimulavam a vacuidade dramática das narrativas. 

Do percurso que vai de O sexto sentido (1999) até A vila (2004), Shyamalan compunha narrativas sobre indivíduos que tomam consciência sobre o que eles realmente são, tanto aquilo que eram-lhes desconhecido até então, quanto aquilo que eles recalcaram sob as camadas profundas do trauma. Nestes filmes, a mise-en-scène funcionava como um sismógrafo, ou um polígrafo, capaz de apreender as mínimas progressões do afloramento desta autoconsciência  lembremos, por exemplo, em Corpo fechado (2000), de cena em que Dave Dunn (Bruce Willis), paulatinamente compreende os seus superpoderes ao erguer barras de ferro cada vez mais pesadas sob o olhar fascinado do filho.

É a partir de A dama na água (2006) que a filmografia Shyamalan envereda por caminhos mais tortuosos. O seu interesse na composição de uma dramaturgia coesa (ecos de algum classicismo) dava lugar ao adensamento de uma vontade por retórica. Toda a metalinguagem exercitada nesse filme, seu jogo de ficção dentro da ficção, já era um prenúncio do que desembocará no found-footage de A visita (2014), no jogo com as múltiplas personalidades do protagonista de Fragmentado (2006) e a pseudoradicalidade no trato com o tempo em Tempo (2021). Nestes obras, a sobriedade e a concisão de seus seus quatro primeiros trabalhos eram substituídas pela superfície de uma (falsa) inventividade da forma cinematográfica.

A exceção vem como Vidro (2019) e agora com Batem à porta (2023). Do primeiro, um filme de Super-Herói sem os vícios nefastos do gênero, os três super humanos (Dunn, Sr. Vidro e A Besta), ao serem encarcerados em um hospital psiquiátrico, passam a ser torturados para que abandonem a consciência que possuem sobre si mesmos. Shyamalan transfere o campo de batalha épico para a superfície do rosto de seus protagonistas; sua câmera atuando para captar a forma como que a palavra inimiga impactava e era resistida e combatida – na alma de suas vítimas, concentrando-se na erupção de seus gestos, olhares e tremores. Shyamalan retornava à mise-en-scáne como um sismógrafo

Em Batem à porta, pode-se dizer que há um retorno mais frontal àquilo que Shyamalan construiu em seus primeiros filmes. Ainda que ele nunca tenha abandonado as narrativas concentradas em microcosmos, aqui há mesma precisão e sobriedade no trato entre aquilo que está dentro e uma ameaça que vem de fora. Durante toda a sua metragem, o seu novo filme parece um objeto fora do tempo presente, como se ele pudesse ter sido o passo seguinte que ele daria após a conclusão de A vila, o caminho coerente com o todo de sua obra até então se ele houvesse permanecido fiel à carpintaria da encenação.

Quatro estranhos, um pedido.

Na trama, durante as férias em uma cabana remota, a jovem Wen (Kristen Cui) e seus pais Eric (Jonathan Groff) e  Andrew (Ben Aldridge) são feitos reféns por quatro estranhos armados, capitaneada pelo professor Leonard (Dave Bautista), e  que exigem que a família faça uma escolha impensável para evitar o Apocalipse. Um membro da família precisará ser escolhido para ser sacrificado. Sem acesso ao mundo exterior, a família tenta desconstruir a irracionalidade da crença de seus sequestradores, ao passo que precisam lidar com a dúvida que surge sobre a  possibilidade deles estarem falando a verdade.

Shyamalan não faz um filme de sequestro como tantos outros. A construção de seus personagens afasta o maniqueísmo entre vilões e vítimas, entre a racionalidade e a crença supranatural. As vítimas estão diante de um grupo de pessoas que acreditam veementemente que estão destinadas a evitar o fim do mundo; são pessoas comuns que, à exceção de um, não possuem histórico de violência ou de desilusão. O que os uniram foi que todos compartilharam das mesmas visões clarividentes que anteviam a aniquilação total; a mesma revelação que os impeliu a assumirem uma responsabilidade maior que as suas próprias individualidades. 

Os vilões não fustigam as suas vítimas com torturas físicas; sua coerção se dá através de um dispositivo brilhante da narrativa: a cada recusa da família em sacrificar um dos seus, um dos sequestradores entregar-se à própria morte pelas mãos de um dos companheiros, o que desencadeará pragas ao redor do mundo, verdadeiras tragédias em grande escala  mas que são apenas prenúncios daquilo dizimará totalmente a humanidade. Os efeitos dessas pragas são acompanhados ao vivo através da tevê e a correspondência entre os sacrifícios dos sequestradores e os eventos trágicos é o que abala as estruturas lógicas de Andrew, Eric e Wen

Todavia, a narrativa  de Batem à porta caminha com muito equilíbrio sobre o fio que separa o que é real e o que é fantasia, o que é da ordem concreta do mundo e aquilo que pode ser fruto de um delírio coletivo. Todas as imagens de tragédias que passam na TV são postas em xeque por Andrew, aquele que permanece cético a maior parte do tempo: um terremoto já havia acontecido pouco antes do primeiro sacrifício; o desencadear global de uma pandemia viral já era um risco conhecido após os primeiros casos terem serem noticiados anteriormente. Tudo pode o ser o apocalipse quanto ser apenas o nosso cotidiano trágico que é massivamente divulgado pelas mídias. Qualquer um pode projetar sentido metafísico às coisas do mundo, agregar crenças maiores para justificar a própria inadequação e violência. 

O que fascina em Batem à porta, e o que realmente coloca ao lado de Vidro como os melhores filmes que Shyamalan realizou nos últimos tempos, é que,  para além de uma adesão frontal ao fantástico, o verdadeiro embate se dá na forma como a palavra impacta as mentes e os corações de suas personagens. O espaço reduzido daquela cabana, principalmente o espaço que há entre as vítimas amarradas ao chão e o olhar vigilante de seus sequestradores, este pequeno quadrante tornado palco de uma batalha bíblica, é o local onde a palavra se manifesta e se concretiza. Os sequestradores são como que arautos de uma verdade maior, detentores da palavra capaz de redimir a morte. As vítimas são aquelas que precisam recusá-la ou deixar que ela penetre além das barreiras da razão. 

A câmera de Shyamalan, diante de atores completamente excelentes, capta com muita precisão a forma como aquele verbo é encarnado pela fragilidade humana; a palavra que a  que a toma e a eleva a uma posição sublime, um sublime que é alcançado pela total abnegação e sacrifício. E todo o caminho pedregoso que o indivíduo atravessa ao lidar com a  crença e suas dúvidas, tudo é exposto em suas mínimas ressonâncias na fisicalidade de seus corpos. Eis um filme que, no interior do gentrificado e cínico atual cinema americano, reencontra aquela característica que era comum aos clássicos e aos modernos: ao filmar um corpo pode-se acessar a alma. Uma questão de mise-en-scène, por fim. 

Leia também a crítica de Luiz Joaquim para Batem à porta

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