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Críticas

Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas

O rap da violência desfocada

Por Luiz Joaquim | 24.05.2018 (quinta-feira)

– publicado originalmente em 1 de junho de 2003

Quando chegou ao Recife para sua primeira exibição – no 4° Festival de Cinema do Recife, o filme O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Brasil, 1999) dos pernambucanos Paulo Caldas e Marcelo Luna, trazia consigo uma forte expectativa uma vez que, na bagagem, carregava o título de melhor documentário alcançado no É Tudo Verdade – 4° Festival Internacional de Documentário e no 2° Festival Internacional de Cinema de Brasília, ambos em 1999. Essa primeira exibição local do filme, ocorrida para um público médio de 2.500 pessoas no Teatro Guararapes, também era especial pois saciava uma fome do público recifense de ver a própria cara no cinema. Esse gosto havia sido estimulado pela primeira vez dois anos antes, com O Baile Perfumado. Longa dirigido também por Caldas, em parceria com Lírio Ferreira.

Contando duas histórias de vida, com a mesma origem, mas com destinos distintos O Rap do Pequeno Príncipe… apresenta os personagens Helinho, aos 21 anos, conhecido como um justiceiro que “limpava” a cidade das “almas sebosas” (expressão regional para designar pessoa nefasta e, de um modo geral, indesejada) e Garnizé, baterista da banda Faces do Subúrbio. Fã de Malcom X, Che Guevara e Zumbi de Palmares, Guarnizé nasceu e criou-se no mesmo ambiente de Helinho, mas expressava seu desconforto com a sociedade que o rodeia através da música. De índole pacífica, foi líder comunitário entre outros papeis que o destacaram na comunidade de Camaragibe.

Helinho e Guanizé são duas figuras polarizadas e complementares, representando duas reações diferentes, oriundas do mesmo ambiente hostil, carregado de pobreza e violência. Só por escancarar esses personagens e esse mundo à classe média, O Rap… já merecia o crédito que acabou conseguindo. É preciso lembrar que no ano de 2000, a produção cinematográfica brasileira estava ganhando projeção com trabalhos que buscavam entreter pintando um retrato nada parecido com a cara do Brasil (só para citar dois exemplos, Bossa Nova e Como Ser Solteiro).

O papel de inquestionável importância, para o cinema nacional, contido no documentário de Caldas e Luna estaria, então, em ter aberto o caminho de interesses do público para um lado da sociedade normalmente maquiado pela mídia. O Rap…, de certo modo, ajudou a escancarar, sim, os olhos do público para torpedos que viriam num futuro próximo. Bombas poderosas sobre o lado cru da vida na cidade grande chamados Babilônia 2000, O Invasor, Edifício Máster, Ônibus 174, A Margem da Imagem e até o mega-sucesso Cidade de Deus. Esse último, ao seu modo, esbofeteou (e encantou) o público com sua direção de elenco, de arte, montagem e estética ultra-estilística para desenvolver sua narrativa e chamar a atenção para a violência com sotaque de favela carioca.

Mas, paradoxalmente, também em O Rap… é fácil identificar sua contaminação pelo vírus comum à mídia – aquele que distrai a atenção do foco do problema para si mesmo. O umbigo torna-se mais importante que a intenção do discurso. A realidade (ou a pretensão de realidade) que se quer mostrar fica cada vez mais distante do real (ou daquilo que se entende como real).

Quando os dois diretores optam por documentar uma história atendendo aos ímpetos de linguagem cinematográfica ficcional, (ritmo extra-eloqüente na montagem, movimentos muito elaborados de câmera, enquadramento não-convencional sobre os personagens) garantem um belo acabamento às imagens do filme. Mas, todos esses efeitos acabam por embaçar o que se quer dizer por trás daquilo que efetivamente estamos acompanhando visualmente.

Não se quer, aqui, exigir um tratamento de isenção total sobre o que se mostra (não queremos o impossível), apenas acreditamos que, na medida, em que, por exemplo, quando Guarnizé depõe sobre seu interesse em fazer de sua atividade musical um instrumento de educação e formação social (dizendo suas razões por isso), e esse depoimento é entrecortado com imagens de uma escola com crianças brincando e “aplaudindo” a fala do percussionista (por meio da montagem)¸ entendemos que essa estratégia narrativa dispersa o próprio peso do depoimento.

O grau de envolvimento do espectador é muito mais forte quanto mais próximo ele estiver ao foco do problema. O laço do espectador é muito mais forte com o problema documentado quanto mais livremente o problema fala a esse espectador; e quanto menos ruídos, provocados pelo intermediário, estejam atuando nessa passagem da informação.

Assim, O Rap… parece funcionar melhor em suas várias partes, em vários tópicos que aborda – dentro de um tema maior, centrado na tensão social – do que quando pretende desmembrar a complicada engrenagem que gerou Helinho e Guarnizé: duas personalidades diferentes, mas não opostas, de uma mesma tragédia social brasileira.

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