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Críticas

Acqua Movie

Lírio, sereno, feminino e inspirado num filme sobre reconciliações e natureza.

Por Luiz Joaquim | 16.08.2020 (domingo)

Começa Acqua movie (Bra., 2019), o sexto longa-metragem de Lírio Ferreira (quinto, solo), e sabemos imediatamente que está por vir um trabalho cuidadoso e delicado. Sobrepondo-se às imagens lindas de águas em fluxo, captadas na fotografia de Gustavo Hadba, escutamos em off uma história indígena sobre o mistério da origem de águas tão cristalinas, e, logicamente, sobre a sua importância. A fluidez na montagem de Vânia Debs estabelece, já aqui, que teremos um filme que deverá correr na vibração da harmonia.

A transição para a sequência seguinte só endossa essa percepção. Cercado pelo escuro, e como que emoldurado por uma espécie de recorte barroco, tendo uma trabalhada renda branca a sua frente, vemos Jonas (Guilherme Weber, de volta ao mesmo personagem de 15 anos atrás, em Árido movie) conversando por telefone com Duda (Alessandra Negrini), a esposa de um casamento fracassado. Ela é uma documentarista etnográfica, que está trabalhando na Amazônia.

Muito lentamente, a imagem vai abrindo e descobrimos que a moldura é a fechadura de uma porta pela qual nós, espectadores, estamos espiando (o que é o cinema senão uma fechadura convidativa ao olho?). E, como se não bastasse, o mesmo plano se abre para a reprodução de uma xilogravura de Gilvan Samico.

Num mesmo movimento, Lírio, Hadba e a arte de Acqua movie (assina Carla Sarmento) resumem informações fundamentais sobre Jonas: a sua situação atual, a sua origem e a sua sensibilidade. Lírio abre, portanto, seu novo trabalho pelo encerramento dado por Antonioni em Profissão: Repórter.

O travelling (e não importa o quanto há de pós-produção aqui) pode também ser lido como uma representação do espírito de Jonas (também um jornalista, como o Locke de Jack Nicholson), só que não sem rumo, tal qual o do filme italiano, mas em direção ao filho Cícero (o ótimo Antônio Haddad) que ali, pelos seus 12 anos de idade, precisará viver só com a mãe a partir de uma circunstância inesperada.

Atendendo ao pedido de Cícero, Duda resolve levar o filho para conhecer a terra onde Jonas nasceu. O fictício município de Rocha, ou melhor Nova Rocha, uma vez que a verdadeira cidade está coberta por água por conta da construção de uma represa (entre as locações, estão os municípios de Salgueiro e Petrolândia, no Vale do São Francisco, Pernambuco).

É quando Acqua movie passa a se apresentar em sua essência. A da história de reconciliação entre mãe e filho, tendo a viagem, a estrada, seu destino e seus perigos como elementos de aproximação entre os dois.

Lírio tem aqui, talvez, seu filme, em termos temáticos, mais maduro, sendo forte concorrente também no campo estético. Pode-se dizer que é seu mais feminino filme (seja lá o que isso signifique), uma vez que o elemento constante e fundamental aqui é a água e Duda – numa ótima presença de Negrini -, que é dona de todos os ambientes do filme, esforçando-se com o filhote ainda que, de início, este a rejeite. Vide a incômoda cena (no bom sentindo) do corte no pé.

Mesmo que, de início, se apresente como intimista – e esse é o tom inicial, o de um luto – e que, para se assemelhar a qualquer dura obra nórdica só falta-lhe as cores frias -, Acqua movie não se priva de humor. Mas, ao contrário de Árido movie (filme mais masculino, seja lá o que isso for), o humor aqui é quase uma brisa que vai dando sinais do relaxamento da tensão entre Cícero e Duda.

A simples presença de Cláudio Assis, como governador do Estado, ou a de Edgard Navarro como o dono de um bar à beira do São Francisco, dão essa leveza. Assim como a maravilhosa participação de Marcélia Cartaxo e Zezita Matos, tendo Augusto Madeira como prefeito de Nova Rocha. O desenho aqui é o de uma família próxima a algo feliniano.

Não muito simples é estabelecer a responsabilidade de um desequilíbrio na narrativa de Acqua movie: se se dá na direção, montagem ou roteiro (co-assinado pelos peso-pesados, Lírio, Marcelo Gomes e Paulo Caldas). Quando atentamos para a sequência em que Cícero entrega o seu paradeiro aos vilões, não encaixa que o faça pelo smartphone da mãe, que foi às compras sem o aparelho.

Tal preciosismo nem é tão importante nesta análise sobre o filme, mas tudo o que vem a seguir – uma violência desproporcional ao todo -, só reforça uma suspeita de que o arranjo no roteiro foi feito para nos levar a um momento catártico, numa cerimônia indígena.

Senões à parte, Acqua movie parece apresentar um Lírio Ferreira sereno em seu cinema, inspirado como há algum tempo não o víamos, e nos oferecendo belezas que nossos olhos precisam enxergar, como a da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na antiga Rocha, ou melhor Petrolândia.

Em tempoAcqua movie está em competição pela 9. Mostra Ecofalante, este ano em formato digital, e o filme pôde ser visto por streaming até ontem (15). A mostra segue online, gratuitamente, até 20 de setembro. Detalhes aqui.

 

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