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A arte contemporânea, seu mercado e o cinema

Como “Aquiles e a Tartaruga” e “The Square” nos provocam sobre a arte contemporânea e o seu mercado?

Por André Aquino | 03.09.2018 (segunda-feira)

Em 2005 Takeshi Kitano, cineasta e ator japonês, deu início a uma trilogia de filmes autobiográficos que tinham como pano de fundo os bastidores do entretenimento e da arte, e personagens que buscavam, por meio de diversas estratégias, alcançar o reconhecimento e a legitimação. Em Aquiles e a tartaruga (2008), último dos três, Kitano constrói com o humor negro que lhe é peculiar a tragicômica trajetória de um artista que sacrifica tudo em nome da sua arte, sem jamais ser bem sucedido.

Este filme, em particular, perpassa em seu enredo as reconfigurações do campo artístico ocorridas do alto modernismo ao momento atual, com a emergência e propagação de novas estratégias e relações de poder travadas entre os atores sociais responsáveis pela legitimação artística. Não raro este é drama enfrentado por artistas, emergentes ou não, que na busca pelo sucesso submetem as suas produções ao que percebem como indicador ou modelo de destaque, muitas vezes sacrificando poéticas pessoais e descambando no pastiche.

O protagonista Machisu, interpretado por Kitano (que produziu ele mesmo as pinturas atribuídas ao personagem), constrói ao longo de sua vida uma coleção de obras extremante diversificada em termos de estilos e gêneros, as quais traçam um panorama das suas tentativas de adequação aos padrões hegemônicos à medida em que vai tomando contato com diversos agentes e práticas artísticas, sempre buscando inserção e reconhecimento, testemunhando as significativas mudanças que a esfera artística sofreu de meados da década de 50 do século XX, até as primeiras décadas do século XXI.

Kitano, à direita, em cena de “Aquiles e A Tartaruga” (2005).

O que talvez tenha faltado à Machiso, e que poderia lhe garantir o êxito em seu projeto de vida, foi esmiuçado no projeto Art Book, realizado entre 2012 e 2014 pelo pesquisador e artista visual brasileiro Bruno Moreschi. Nele o autor constrói uma ficção criada a partir de clichês identificados por ele em dez enciclopédias internacionais de arte. Seu livro traz biografias, imagens de 311 obras e declarações de 50 artistas inventados por Moreschi a partir de estereótipos mercadologicamente exemplares do que seria o artista contemporâneo, demonstrando que o sistema da arte contemporânea pode vir acompanhado de manual de instruções, e que decodificá-lo é como aprender um novo idioma.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu propõe que a constituição da arte enquanto campo autônomo, com um manual de instruções independente, acelerou-se consideravelmente com a Revolução Industrial, transformando as relações que os artistas mantém com os não-artistas e com os demais artistas, implicando em novos papeis sociais para o artista e sua arte. O autor menciona como índices dessa mudança as seguintes transformações sociais: a constituição de um público de consumidores virtuais mais amplo e diversificado, capaz de propiciar aos produtores de bens simbólicos alternativas econômicas e novas instâncias de legitimação; a constituição de um corpo de profissionais e empresários cada vez mais numeroso e detentor de certo espírito de classe; e a multiplicação e diversificação de instâncias de consagração competindo pela legitimação cultural.

De volta ao filme de Kitano, não à toa o personagem principal é filho de um industrial e grande colecionador de Arte, que recorre à intermediação de profissionais para adquirir os itens de sua coleção. Para Bourdieu, os bens culturais possuem uma economia e uma lógica específicas de apropriação que faz com que uma obra de arte só adquira sentido e só tenha interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada. Esse tipo de relação demanda a existência de uma mediação realizada por atores especializados que atuam nesse campo.

De início o filme de Kitano apresenta como tríade primária as figuras do artista, do galerista e a do mecenas/colecionador. O galerista, profissional por excelência desse campo da arte, agencia o artista, intermediando sua relação com o colecionador, que por sua vez investe na produção atestada como legítima pelo galerista. No decorrer do enredo juntam-se a eles as figuras dos teóricos, com sua produção bibliográfica, que serve de referência para a formação do artista, apresentando e dando legitimidade aos estilos, movimentos e tendências que devem ser apropriados. A imprensa, especializada ou não, também aparece no filme dando conta da urgência da produção de conteúdos tão própria da contemporaneidade, sendo responsável pela difusão do gosto médio. O filme não aborda a potência das redes sociais, mas certamente elas também lhe caberiam. Quanto mais especializado o discurso, mais propício ele se torna às manobras especulativas do mercado.

É o que vemos em outro filme, desta vez o sueco The Square: A arte da discórdia (2017), de Ruben Östlund, que de forma ácida retrata bastidores da arte contemporânea nos quais o mercado tem sido uma instância privilegiada para a compreensão das tensões entre os diferentes sujeitos conectados com as artes visuais. Para promover uma exposição vale tudo, como adotar irrestritamente e sem freios éticos estratégias de publicidade e marketing que geralmente associamos à sociedade de consumo ou ao exercício da política na era das mídias.

Cena de “The Square: A arte da discórdia”

Mais do que nunca, compreender o mercado tem se tornado uma necessidade para todos aqueles que pesquisam e produzem arte. Segundo a pesquisadora francesa Raymonde Moulin algumas premissas, deliberadas ou transformadas em lugares-comuns, tornaram-se importantes: o mercado não possui estilos prediletos, nem está preocupado em realizar grandes distinções entre eles; adere ao que for mais rentável e ao que garanta a arte como objeto de distinção de classe; o mercado age sobre outras instituições, não necessariamente ligadas a ele, como museus, universidades e a mídia, além de influenciar cada vez mais a produção do artista; o mercado como unidade não existe. O alto mercado de arte é internacionalizado, só encontra paralelo com o mercado financeiro global, movimentando grandes volumes monetários e articulando toda uma rede de instituições públicas e privadas para a constituição do estatuto artístico.

Para a pesquisadora o mercado da arte contemporânea consolidou-se como um jogo especulativo intenso, pois o próprio estatuto do que venha a ser ou não arte e o que tem ou não valor de mercado estão continuamente em negociação, o que faz do risco um dos fatores mais importantes da arte contemporânea. Esse risco é inevitável para quem faz, para quem vende, para quem critica e para quem compra, o que faz da relação entre a produção da arte contemporânea e o mercado algo tenso e contraditório. Artistas permanecem criticando os alicerces que mantêm tal mercado, ao mesmo tempo em que, cada vez mais, o preço de uma obra ratifica ou não a própria obra como um trabalho econômico de credibilidade no plano estético.

“A credibilidade da arte contemporânea não reside apenas no trabalho dos agentes tradicionais, como administradores e peritos de museus, historiadores da arte, e curadores. Cada vez mais, o artista precisa da anuência do mercado da arte para estabelecer-se profissionalmente. As galerias e colecionadores interferem em bienais, feiras e mostras internacionais. Presentes nos principais conselhos de administração dos grandes museus, ele pode garantir a presença dos artistas que convêm a sua coleção privada e das galerias que estão associadas a ele, garantindo que os artistas dos quais possui obras não desvalorizem, driblando com a consolidação desse valor simbólico os problemas para controlar a circulação da arte na medida em que os artistas contemporâneos testam novas formas, técnicas e suportes, desrespeitando qualquer bom senso mercadológico”.  (MOULIN, 2017)

Não se deve, entretanto, com a crítica, abraçar indistintamente discursos como os da historiadora e crítica de arte mexicana Avelina Lésper que defende ser a arte contemporânea uma grande falácia. O desafio a que esta produção nos lança cobra uma apropriação não apenas das produções mas também dos seus contextos de produção e difusão. Encampar caças à bruxas é perigoso pois admite de antemão a censura baseada em preconceitos, que tolhe a liberdade de expressão e empobrece a arte e a cultura. Encenações da esfera artística como as encampadas pelos filmes de Kitano e Östlund devem ser tratadas com o cuidado e apuro da pesquisa e da discussão, sem os quais correm o risco de servir de argumento para compreensões e posturas superficiais e arbitrárias.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. (org. Sérgio Miceli). São Paulo: Perspectiva, 1974.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo, Martins Fontes, 2005.

MOULIN, Raymonde. O mercado da arte: mundialização e novas tecnologias. Trad. Daniela Kern. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.

MORESCHI, Bruno. Art Book: A construção de uma enciclopédia de artistas. Campinas, SP : [s.n.], 2014.

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