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Festivais

23. Tiradentes (2020) – “Os Escravos de Jó”

O desespero de uma juventude que desperta a consciência sobre o seu berço ser manchado de sangue.

Por Marcelo Ikeda | 25.01.2020 (sábado)

– acima, Antônio Pitanga, um dos homenageados desta edição, em cena de Os Escravos de Jó

Rosemberg Cariry mantém sua filmografia em movimento realizando um contundente retrato político das contradições de nosso tempo. Neste que é o seu décimo-segundo longa-metragem, tornando-o o mais prolífico cineasta cearense, Rosemberg desloca-se do mais típico elemento de sua cinematografia – o exame da cultura nordestina, especialmente o papel da arte popular – para se debruçar em um tema espinhoso: a herança dos movimentos totalitários na sociedade contemporânea. Para tanto, Rosemberg (e sua equipe, de grande maioria cearense) se desloca de seu Ceará e vai filmar em Ouro Preto. A base dessa escolha está nas origens do barroco brasileiro – motivo de constantes investigações por parte do cineasta. Ou ainda, na busca de um retrato do seu conceito de “transbarroco” – o barroco como movimento de simbiose (de encontro e confronto, de transfiguração poética) entre diversas tendências artísticas.

Mas a escolha de Ouro Preto deve ser vista também por motivos políticos, que se revelam centrais para a obra. Toda a riqueza do patrimônio histórico da cidade, expressa nas colossais obras da arquitetura e escultura coloniais, escondem a outra face da produção da história – a existência de escravos que não puderam fazer a opção por suas vidas, servindo a um projeto que não lhes pertencia.

É como se Rosemberg nos alertasse que, para entender o ressurgimento dos movimentos totalitários no presente, é preciso escavar as ruínas do passado, e encontrar na processo histórico as origens da opressão e da discórdia.

Escravos de Jó representa, portanto, uma guinada na filmografia de Rosemberg, apresentando-se como um drama sóbrio em que o diretor examina a erupção das querelas sociais entre imigrantes de diferentes origens étnicas, representando o caldeirão de intolerância e violência que vivemos em nossos dias. Um casal de irmãos de origem muçulmana busca se integrar (não sem conflitos) na sociedade local. O filme gira em torno de assuntos delicados, como o conflito árabe-palestino, mas é nítido que a análise de diferentes culturas soa como um indício de retratar justamente o nó que vivemos hoje em nosso país. O nazismo surge como uma chaga que ainda não foi superada, mas permanece vivo em nossos modos  de ser. Assim como a escravidão e o racismo.

Para abordar esses temas de grande complexidade, Rosemberg criou uma narrativa com um mosaico de personagens, entre os quais se estabelece um conflito de gerações. O conflito árabe-palestino se expressa na oposição entre os personagens de Everaldo Pontes e Antônio Pitanga. Uma velha senhora francesa representa o olhar europeu, que também carrega de forma ativa os traumas e horrores da guerra.

De outro lado, existe um grupo de personagens jovens, muitos dos quais estudantes universitários. Primeiro, o casal de irmãos muçulmanos – ele, um vendedor ambulante, constantemente ameaçado por outros jovens; ela, uma estudante que trabalha na preservação dos monumentos históricos. Outra estudante torna-se amiga de Yasmina e é uma militante ativa no movimento estudantil. No entanto, o protagonista é Samuel, um jovem cearense que mora em Ouro Preto como estudante universitário do curso de cinema. Ele faz um documentário sobre o barroco mineiro e se apaixona por Yasmina. A narrativa, composta em estilo clássico sóbrio, é hábil em se mover de um para outro personagem, compondo uma espécie de teia que compõe o complexo panorama proposto pelo diretor. São muitas as nuances entre os personagens que precisariam de um texto mais longo para serem desdobradas.

Girando em torno de seu protagonista, Escravos de Jó é um filme que se debruça sobre o papel da juventude. À medida que Samuel pesquisa sobre a história e mergulha em seu próprio passado, percebe que ele não está isolado do movimento do genocídio, mas, ao contrário, é parte presente de suas heranças – ou ainda, é uma própria semente desses genocídios. Num certo momento, o filme sugere um debate se essas lacunas serão resolvidas pela guerra ou pela poesia. Talvez só o amor possa vencer essa batalha histórica – mas é preciso, antes de tudo, reconhecer que nossa sociedade contemporânea é um desdobramento do genocídio. As imagens coletadas por Samuel – nos vídeos ou nas fotos que cola nas paredes – se embaralham na produção de um imaginário coletivo em que o amor é abafado pela guerra. Nesse caldeirão de culturas, entre o conflito árabe-palestino e os entrecruzamentos entre Europa e Brasil, surge também um curioso entroncamento proposto pela narrativa, ao usar como referências tanto a parábola bíblica de Jó quanto a tragédia grega de Édipo.

A narrativa se desenvolve numa espécie de espiral em que o terço final do filme caminha progressivamente para o clímax da tragédia em que nos vemos aturdidos. Escravos de Jó, esse sóbrio filme que desfolha outros caminhos na filmografia do veterano Rosemberg Cariry, é um exame contundente das heranças do totalitarismo em nossa sociedade contemporânea, mas o faz sem que se torne um filme de tese ou meramente um manual de panfleto. Ele simplesmente mergulha no desespero dessa juventude que, ainda que bem intencionada, começa a despertar a consciência de que seu berço é manchado de sangue.

Foto Leo Lara/Universo Produção

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