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A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Celso Marconi faz tocante análise entre o que se perdeu (ou deixou-se de ganhar) na adaptação do filme

Por Celso Marconi | 24.01.2020 (sexta-feira)

– texto originalmente publicado por em 6 de novembro de 2019 na página do Facebook Celso Marconi Medeiros Lins.

Esse filme é o sétimo feito pelo cineasta cearense Karim Aïnouz, A vida invisível, mas certamente é o mais conhecido pelos fatos de ter recebido o melhor prêmio na mostra Un certain régard no Festival de Cannes, de ter a presença festiva de Fernanda Montenegro, de ser o escolhido para representar o Brasil no Oscar de Melhor filme estrangeiro, entre outros pontos. Ouvi num comentário de um blog que A vida invisível tem bastante chances de chegar a ser um dos concorrentes ao Oscar porque ele foi ‘adotado’ pela Amazon e esta tem um grande (não sei o nome em inglês para dizer) estofo para trabalhos desse tipo.

Assisti A vida invisível num cinema de arte da avenida Rosa e Silva, Recife, e confesso que perdi muitos dos diálogos. Foi uma visão incompleta. E então para me compensar li o livro de Martha Batalha A vida invisível de Eurídice Gusmão. Fiquei meio tonto sem saber o que fazer. E isso porque do ponto de vista da construção estética são dois produtos quase inteiramente diferentes. E eu naturalmente me liguei muito mais ao livro.

Gosto muito do cinema de Karim Aïnouz e particularmente de O céu de Suely e também de Madame Satã. São dois melodramas sátiros. Olham a vida com um certo sarcasmo. Porém esse lado satírico não encontrei em A vida invisível. E também não encontrei uma visão do Rio de Janeiro. Ouvi numa entrevista ele elogiando a luz do filme. Fez justamente essa luz muito distante do que é e poderia ser a luz do próprio Rio de Janeiro. Ele também afirma que não quis fazer um filme realista. Mas sim um filme sublinhado por uma aura. Não consegui encontrar isso. O que me parece é que Karim ficou muito subordinado à produção e nesse aspecto a parte alemã da produção. Deixando que o filme fosse mais europeu e assim poderá agradar mais ao espectador europeu e do resto do mundo. E talvez até do Brasil. Mas deixou de lado a verdade que tem que existir numa obra de arte. E existe em seus filmes que eu conheço.

cena do filme “A vida invisível”, de Karim Aïnouz.

Gostei muito do romance A vida invisível de Eurídice Gusmão. Claro que é um trabalho de uma iniciante mas também de alguém que naturalmente tem o que dizer ao público. O final do romance é o mais anti-sucesso, é até mesmo simplório, e não tem nada que se aproxime da apoteose da presença de Fernanda Montenegro aos 90 anos comemorados. Certo. Confesso que ao ler a última página da novela chorei. Talvez pelo fato de sentir um trabalho verdadeiro. A presença da repórter que Martha Batalha foi está intacta mas também a da futura grande escritora.

O Rio de Janeiro que não senti no filme está bem presente na novela. Tanto mais o Rio que começa na Tijuca ou mesmo em Santa Tereza quanto um pouco do Rio da Zona Sul de Ipanema e Botafogo. No livro os homens estão quase totalmente escanteados mas não acontece como no filme onde o papel dos homens é de verdadeiros verdugos. Os anos 1940 e 1950 estão presentes no livro com inteireza. No filme não há essa verdade. Para Karim a estória não teve nada a ver com o Rio de Janeiro, poderia ter acontecido em qualquer cidade do mundo. Martha Batalha conheceu como repórter a vida dos anos 1950 particularmente e mostrou com o romance a sua visão. ‘Esqueceu’ os homens quase totalmente para mostrar algumas mulheres. A vida invisível de Eurídice não é uma vida inexistente. Eurídice tem uma vida cheia de momentos de plenitude. Porém todo mundo ‘esquecia’ que ela estava querendo viver. E inclusive mostrar para os outros a sua vida. Certamente Martha botou o título em torno de Eurídice porque foi em torno dessa moça que ela construiu o seu livro. E deixa claro que tudo o que Eurídice escreveu está justamente no livro que ela Martha escreveu. A autora se transforma na personagem e esta se transforma na autora.

Enfim temos dois produtos diferentes embora o filme tenha se ‘inspirado’ no livro. O filme tem muito mais acabamento técnico-estético do que o livro é verdade. Mas o livro tem sua autonomia e a jovem jornalista que nasceu no Recife e se criou na Tijuca mostrou que tem garra para ser uma grande escritora. Ela já tem outro livro lançado, Nunca houve um castelo.

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