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Festivais

Roterdã, IFFR (2020) – Aos Pedaços

Apesar do virtuosismo formal, Ruy Guerra mostra dificuldade em mergulhar no trágico do protagonista

Por Marcelo Ikeda | 29.01.2020 (quarta-feira)

ROTERDÃ (HOL.) – Aos Pedaços, de Ruy Guerra, Brasil, 2020 – The Tyger Burns – Peça de câmara, um huis clos, sem a opulência da produção de filmes como O veneno da madrugada ou Kuarup, Aos pedaços prossegue uma linha estilística apresentada em Estorvo, e que foi aprofundada em Quase memória. Aos pedaços é um filme que, em certa medida, guarda uma nítida influência teatral – a quase total ausência de paisagens, a opção dos interiores claustrofóbicos filmados num preto-e-branco contrastado em fundo infinito, a ênfase no texto declamado como se fossem monólogos demarcados pelos atores.

Ao mesmo tempo, o diálogo com o teatro é complementado por um olhar nitidamente cinematográfico, em especial pelo extremamente sofisticado trabalho de composição de imagem e som. Essas opções se justificam por uma radical recusa do realismo, esgarçando uma escritura de composição cênica de nítida marcação, reforçando um extremo artificialismo.

Esses filmes dialogam com uma atmosfera interior, em que personagens em crise exasperam uma espécie de clima de delírio, em que seus fantasmas interiores se projetam para um jogo de luz e sombras extremamente marcado, como resquício do expressionismo.

As heranças do expressionismo se fazem presentes não apenas no jogo entre luz e sombras, mas na dramaturgia em que a mão trágica do destino assola a vida comum dos personagens, torturados por seus demônios internos. Ainda, no caso de Aos pedaços, Ruy Guerra dialoga com elementos do cinema noir – mas aqui estilizados para uma total reação ao realismo.

O roteiro do filme pode ser sintetizado em algumas poucas frases: um homem é atormentado pela notícia de que uma de suas duas mulheres (uma espécie de duplo) o irá matar com um tiro de revólver. O filme então mergulha numa espiral obsessiva, em que esse homem irá projetar em seu inconsciente essa pulsão de morte, desconfiando de suas duas mulheres. Elas, com seus cabelos loiros, são uma espécie de femmes fatales, que expressam ora sua fascinação ora sua repulsa pelo homem com quem são casadas.

Esse clima de agonia e delírio será intensificado por um trabalho exemplar de fotografia, trabalhando com modulações de profundidade de campo e angulações e movimentos de câmera nada convencionais.

No entanto, o tom excessivamente demarcado do texto, a certa previsibilidade da narrativa, seu desfecho final excessivamente explicativo como fábula moral torna Aos pedaços, assim como Quase memória, um exercício formalmente fascinante mas que, para além de seus recursos virtuosísticos, possui imensa dificuldade em mergulhar de fato na condição trágica desse personagem. Os filmes recentes do grande Ruy Guerra fecham todas as portas de sua dramaturgia para dentro de si: são filmes trancados por dentro, em que o espectador fica com a sensação de que não é convidado para participar. Lembro a famosa afirmação de Jean Renoir, que dizia que, mesmo filmando em estúdio, é preciso sempre deixar uma janela aberta, para que a vida possa entrar no filme. Sinto falta daquela brisa que balança a copa das árvores, como dizia Straub sobre o cinema do Griffith. E digo isso não simplesmente pelo fato de o filme ser todo filmado em interiores (na verdade quase todo, há algumas belas cenas em externas), mas para algo além do espaço físico, algo que expressa a própria natureza desse ensaio formal. O extremo formalismo de Guerra expressa seu determinismo – como se não só o cinema mas também a vida fossem um jogo de cartas previamente marcadas

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