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Festivais

Roterdã, IFFR (2022): Met Mes (The Photo Camera)

Mostra Tiger Competition

Por Marcelo Ikeda | 16.02.2022 (quarta-feira)

Met mes (Países Baixos, 2022 – no título em holandês, que poderia ser traduzido como “com faca”) parte de um interessantíssimo ponto de partida, que se remete a uma complexa questão moral. Eveline decide abandonar o fútil programa de televisão em que é apresentadora para passar a filmar documentários sobre “questões sociais relevantes”. Para isso, investe suas economias na aquisição de uma “moderna” câmera de vídeo. Ao sair para realizar suas primeiras filmagens, sua câmera é furtada, numa jogada tramada por dois jovens estudantes que querem arrumar dinheiro para comprar um novo apetrecho. No entanto, a seguradora não pode ser acionada em caso de furto mas apenas em roubo. Assim, Eveline inventa uma mentira para se safar: diz que ela foi atacada por um jovem que a ameaçou com uma faca. Quando o jovem é capturado ao tentar vender a câmera, percebe que sua ação poderá ter graves consequências devido à acusação, ainda que inverídica, de Eveline.

Essa grande sinopse pode passar a impressão de ser um drama realista sobre um encontro inesperado e uma tomada de consciência, aos moldes de um dos decálogos do grande mestre Kieslowski. No entanto, não é esta a opção do diretor holandês Sam de Jong. Ao contrário, ele busca enfatizar a ironia da situação, uma vez que esgarça a vocação realista de seu conto moral para hiperestilizar seu filme, como se fosse um dos programas de televisão de gosto duvidoso apresentados por Eveline. Sua estética, portanto, aprofunda esse mal-estar: sem se perceber disso, a bem intencionada Eveline está profundamente contaminada pela ideologia de seu programa, sendo incapaz de abraçar as questões sociais que ela tanto almeja. Ao mesmo tempo, seu individualismo ganha inesperado paralelo com a posição do estudante, que furta a câmera motivado por um mero desejo fútil de consumo. Assim, não há propriamente vítimas nessa relação dupla, mediada pelo simples egoísmo, desejo de consumo e oportunismo, de ambas as partes. As instituições (a polícia, a escola, a família) parecem não estar muito preocupadas em nada além da manutenção de sua própria imagem institucionalizada, seguindo friamente as normas. Ao final, a ironia é que o filme de Eveline de fato acabou disparando as questões sociais que ela inicialmente almejava, mas por uma outra camada. A câmera é, no fundo, essa espécie de faca, que atinge quem estiver por perto, motivada simplesmente pelo seu interesse próprio.

De Song evita, portanto, as conclusões moralizantes de seu conto de vocação moral. Não há, portanto, possibilidade de redenção ou de tomada de consciência diante da iminência de tragédia, mas simplesmente um acordo oportunista entre as partes em que ambos podem “lucrar” com o acontecimento: este é o filme que está sendo feito diante de nós. Mas até que ponto essa câmera-faca pode de fato ferir?

Com isso, surge uma última observação. É curioso pensarmos na relação entre esse filme (Met mes – Com faca) com Het mes (A faca), clássico do cinema holandês, realizado em 1961, por Fons Rademakers. A direta relação entre os títulos (a diferença de uma única letra) e a posição de prestigio de Rademakers na trajetória do cinema moderno holandês permitem a proposição dessa associação entre esses filmes separados por um intervalo de mais de meio século. O filme de Rademakers também trata das hipocrisias das instituições da sociedade holandesa, mas do ponto de vista de um menino que não se identifica com seu meio, e que passa a esconder uma faca, que representa sua revolta mas também seu refúgio, como se ela fosse sua única verdadeira amiga. O humanismo de Rademakers se expressa por sua opção pelo realismo, visto que o cineasta já havia sido assistente de De Sica e Renoir. Seu filme é o avesso de um conto de fadas, mas uma experiência infantil sombria, em que o diretor fica do lado de quem se opõe aos rumos do sistema, ainda que seja uma ingênua criança que ainda não teve tempo de “crescer”.

Por sua vez, Met Mes propõe uma crítica muito confortável ao sistema, incorporando em sua estética uma ironia interna que acaba por reproduzir as representações visuais do ponto de vista do sistema, ou seja, que provoca o espectador mais pelo choque visual do que pelas repercussões morais da narrativa. Nesse caso, a ironia afasta o espectador de uma reflexão crítica, naturalizando os dilemas éticos do filme, que tendem a ser fetichizados por uma superfície sedutora, o que, a meu ver, acaba diluindo a potência do embate ético proposto pelo filme.

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