X

0 Comentários

Artigos

“Parasita” VS “Assunto de Família”

Diferenças nas semelhanças

Por Ivonete Pinto | 13.02.2020 (quinta-feira)

JAPÃO – Dois filmes do Extremo Oriente figuraram nas listas dos melhores de 2019, tendo conquistado inúmeros prêmios. No Brasil, o japonês Assunto de família (lançado aqui com atraso, bem depois da Palma de Ouro em Cannes de 2018), e o sul-coreano Parasita dividiram a atenção da crítica, sendo que este foi o mais votado do Prêmio Abraccine e Assunto de família ficou entre os dez no ranking da associação. E, para estupefação dos amantes habituais do Oscar, o coreano levou os principais prêmios da academia americana, depois de vencer Cannes também. É o primeiro filme a ganhar os prêmios máximos, americano e francês.

Não de hoje o Oriente produz um cinema vigoroso, o que merece análise é a (não) coincidência de serem obras que pensam suas respectivas sociedades, denunciando algo que, para estupefação dos amantes da economia de mercado, seria um absurdo: nestes modelos incensados de capitalismo, há gente pobre (!).

Outro aspecto que cabe analisar é como estes diretores apresentam sua visão de mundo, através de qual linguagem exprimem sua estética.

Primeiro, quanto à abordagem social, temos algo curioso, pois o Japão e a Coreia do Sul são referenciados cada vez que alguém quer defender a não intervenção do estado e a diminuição dos direitos trabalhistas em nome de um automático e compulsório progresso que daí viria. De fato, apenas repassando rapidamente episódios históricos, são países que atingiram um grau de desenvolvimento a olhos vistos. Da estrutura de transporte invejável às centenas de lojas Louis Vuitton; da tecnologia inserida na vida cotidiana à exportação de bens de consumo de toda ordem. Ambos passaram por guerras, sendo que a Coreia do Sul precisa ainda reconquistar sua “outra metade”, a Coreia do Norte. Nações minúsculas comparadas com a extensão do Brasil, mas que nas últimas décadas investiram pesado em educação e cultura, especialmente os sul-coreanos depois que saíram de um longo e nefasto período de ditadura militar (1961-1986).

É desta forma que a indústria do audiovisual se insere, pois é resultado de uma política de estado, de nação, onde bibliotecas são importantes, filmes são importantes. Na Coreia do Sul, por sinal, o cinema se desenvolveu a partir a um sistema de cotas, que muitos ainda chamam no Brasil de privilégio, mamata e outros termos do vocabulário limitado dos inimigos da arte.

Apesar do cenário favorável à produção cultural, há pobres na Coreia do Sul e no Japão. Os números, se observarmos dados estatísticos, são insignificantes comparados com o Brasil, e a própria noção de pobreza não guarda os mesmos parâmetros. Enquanto no Brasil há uma parcela da população desnutrida, e mesmo que passa fome, naqueles dois países os pobres são grupos que vivem à margem. Não têm emprego, moram mal (em casos raros às vezes embaixo de viadutos), vestem-se mal e, pior, não têm acesso a programas de saúde pública. Ou seja, ficou doente, não tem SUS. Os grupos que vivem assim em geral são invisíveis para a indústria do entretenimento. Somente alguns diretores se ocupam deles, pois acaba sendo um tema também à margem.

Para as plateias estrangeiras, ainda há a inexpugnável barreira da língua, de modo que somente os festivais e, recentemente, as plataformas de streaming que promovem a aproximação. Hirokazu Koreeda, de Assunto de família, teve a maioria de seus filmes acessíveis pelo filtro dos festivais, assim como Bong Joon-ho de Parasita.

Tema & forma – A coincidência (ou não) de celebrarmos filmes de preocupação social da Coreia do Sul e do Japão não os torna similares. Há uma profunda diferença na forma de abordar os temas. Embora ambos tenham conquistado a chancela de Cannes, Parasita está mais para Oscar do que para Palma de Ouro.

É tentador fazer uma aproximação de culturas para entender a estética dos filmes. Coreanos são barulhentos e um tanto rudes no trato social. Japoneses são silenciosos e suas mesuras num pedido de desculpas não têm fim.

Cena de “Parasita”

Parasita mistura gêneros muito bem, tem uma direção de atores supimpa, mas opta no final pelo histrionismo catártico. Nada a estranhar. Bong Joon-ho assinou o horror O Hospedeiro (2006), o drama A Mãe (2009), o mais sensível sensível episódio de Tokyo! (2008) e o inominável besteirol Okja (2017). Um diretor eclético no perfil, que em Parasita fez um mix de estilos e com isso agradou plateias mais amplas. Opera num registro, o da mistura de gêneros, que equivale ao Bollywood Massala indiano, só faltou o musical. Tem, no entanto, uma capacidade de comunicação inegável em que o Oscar só o comprova.

Hirokazu Koreeda, que é também romancista, assinou títulos como Ninguém pode saber (2004), Tal pai, tal filho (2013) e Nossa irmã mais nova (2015). Dramas humanistas em que a família é o centro dos desdobramentos sociais. Em Ninguém pode saber, sobre uma mãe que abandona os filhos em um apartamento, é tão ilustrativo quanto Assunto de família para demonstrar que é possível, sim, numa riquíssima cidade como Tóquio, os fatos narrados terem sólida base no real. Neste sentido, Koreeda constrói uma ponte para o documentário, enquanto Bong Joon-ho para a farsa, já que o enredo de Parasita vai por caminhos, digamos, mais livres.

À margem – É notório que a sociedade japonesa é bastante reprimida. Não à toa os canais de televisão extravasam em programas para fazer rir, cheios de ingenuidade infantil. Na vida real há o cumprimento de regras 100% do tempo, de um jeito obsessivo.

A maior transgressão no Japão parece ser atravessar a faixa de segurança dois segundos antes do sinal abrir (depois de se certificar que os carros mais próximos estão a dois quilômetros). Os filmes que em geral mostram pessoas que vão além desta infração, são aqueles que os personagens se negam a contribuir para a engrenagem social e adotam condutas desviantes, como beber e tornar-se violento. Um bom exemplo é o recente One nigth, de Kazuya Shiraishi (2019), onde a esposa mata o marido que infernizava a família. Um ato extremo, em resposta a uma conduta extrema, apresentada de forma realista. E por estranho que pareça, roubar para sobreviver como faz Koreeda em Assunto de família, é também algo absolutamente fora dos padrões num país onde é crime ficar com algo encontrado no chão, mesmo uma moeda.

Cena de “Assunto de Família”

Os índices de criminalidade são deveras baixos nos dois países, a desigualdade social não é alarmante. No entanto, as questões existem e seus intérpretes, os cineastas autorais, diferenciam-se pelo olhar. Enquanto a perspectiva de Koreeda está baseada na sutileza, e no quase desdrama de seu conterrâneo Ozu, Bong Joon-ho escolhe a catarse, dançando um gangnam style. Podia ter dirigido Coringa, inclusive. É preciso, porém, admitir que a estratégia do coreano para atingir um público expressivo e diverso deu certo.

Não há juízo de valor nestas comparações (ok, há sim), o objetivo é chamar a atenção para aspectos do contexto destas cinematografias. Há anos temos diretores de países ricos nos mostrando que por trás das aparências há desigualdade. Ken Loach na Inglaterra e Robert Guédiguian na França, não cansam de explorar o tema. A novidade vem na forma, na origem étnico-geográfica e, no caso de Parasita, no estilo da contundência.

Como nota final, vale lembrar que o pequeno Japão ocupou a Coreia de 1910 a 1945 (à época, uma única Coreia). De certa forma há uma chaga ainda aberta pois não se esquece o caráter de uma dominação que envolveu desde usurpação de bens, a trabalho escravo e estupros. Assim, o Oscar para a Coreia tem um gosto histórico interno para além da nossa compreensão.

Mais Recentes

Publicidade