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Críticas

Fim de Festa

Blow up momesco ou o anticarnaval de um homem

Por Luiz Joaquim | 04.03.2020 (quarta-feira)

O corpo, esse cenário infinito pelo qual o cinema se enamora. Em Pernambuco, um cineasta chamado Hilton Lacerda conhece bem a beleza e a força latente do corpo humano. Seja em repouso, na sua forma inerte, seja pela possibilidade explosiva do seu movimento. Fim de festa (Bra., 2020), segundo longa-metragem de ficção dirigido por Hilton Lacerda (Tatuagem), inicia e encerra com planos valiosos que resolvem essas duas condições no cinema de Hiltinho.

Abre com um flagra sobre a alegria e felicidade de um jovem num balé livre nas ruas carnavalescas de Olinda, instigando os olhos famintos dos bons espectadores em qualquer início de filme a visualmente vasculhar aquela dança em câmera lenta. Encerra com o deslize suave da câmera do mestre Ivo Lopes de Araújo, afastando-se num movimento respeitoso sobre o corpo constantemente fatigado de Breno (Irandhir Santos, excelente), que tenta relaxar ao lado do filho Breninho (Gustavo Patrioca, com ótima presença em cena) na varanda de seu apartamento.

Breno é o fio que arrasta Fim de festa. Estamos no dia #1 dessa história. O de cinzas de carnaval, quando ele, investigador policial, precisou voltar ao Recife de suas férias para assumir o trabalho de desvendar o assassinato de Emma, uma turista francesa asfixiada dois dias antes. O plot policialesco tem inspiração direta num real caso ocorrido há dez anos em São Lourenço da Mata (PE), com a alemã Jennifer Kloker, também assassinada num fevereiro.

Nesse enredo, o roteiro de Hilton (premiado pelo Festival do Rio 2019, que também o consagrou com o “Redentor” de melhor filme), nos apresenta, dia a dia, até o domingo pós-carnaval, o desenrolar dessa investigação. Mas, se fôssemos tratar um filme por uma leitura espiritualista, como um corpo indissociavelmente amarrado pela matéria com a alma, o trabalho policial de Breno (possuidor de uma crônica dor nas costas) interrogando o viúvo, a sogra e o sogro da vítima (Ariclenes Barroso, Suzy Lopes e Jean-Thomas Bernardini, respectivamente) – assim como o desmonte das alegorias e decorações carnavalescas do Recife que Fim de festa mostra – teríamos a materialidade da ressaca momesca.

Já a alma, nessa ressaca, residiria não apenas na quase paralisante tristeza profunda impregnada em Breno pela falta da ex-mulher, mãe de Breninho, como também no retorno à Argentina regado a desesperança com a qual sua sobrinha Penha (Amanda Beça, revelando-se boa atriz) relaciona o reacionarismo do Recife ao de Buenos Aires – como um testemunho de que o mundo, seja onde for, encaretou. Mais do que isso, retrocedeu, em 2019, ao reacionarismo, com um topless na praia ganhando ares de crime.

Há ainda Breninho, personagem que aparece flutuado entre esses dois contextos e o dos novos amigos de carnaval, os baianos Ângelo (Leandro Villa) e Indira (Safira Moreira). Breninho busca, em meio a ressaca corpórea e espiritual, alento e reconhecimento pela arte de Remorso, seu conto amador, premiado num concurso. Eles, Breninho e sua arte, são o que sobrevivem à ressaca. Essa esperança, resistindo dentro da ressaca, por exemplo, aparece no conselho que o jovem dá ao pai na delicada e linda sequência final da varanda.

Sequência, inclusive, que encerra com Hiltinho dando uma resposta ao mundo (que gostaríamos de dar) sobre a invasão de privacidade e sobre a pobreza que se tornou a utilização de drones no cinema. Soa como uma combinação improvável de resolver? Veja Fim de festa e entenda.

Em tempo: na conversa entre Breno e Cosma, interpretada por Hermila Guedes, Hiltinho apresenta um encontro de gigantes do atual cinema brasileiro. Breno, que ficou “velho para o carnaval, ou o carnaval ficou velho” para ele, é a própria personificação da fadiga, corporal e espiritual. Ela é a leveza em pessoa. O colo reconfortante, revigorante.

Irandhir e Hermila, numa espécie de marcação matemática que só os melhores profissionais da atuação dominam, traçam tais sensações imprimindo na tela uma perfeita combinação entre a forma dos movimentos e a força do diálogo. Mais um prazer estético sob o comando do regente Hilton Lacerda.

Antes de encerrar a festa é importante registrar que há algo de trôpego na narrativa do novo filme de Hiltinho. Quando somos tomados de assalto, por exemplo, com as inserções do podcast Dracma, com sua voz de Deus dizendo verdades numa forma mais direta, para nós, espectadores, a sensação mais forte que fica reside no contraste com o já (outro) estabelecido ritmo do filme. O contraste acontece não num bom sentido, mas naquele distrativo, em que a nossa atenção é chamada não para complementar o envolvimento com Fim de festa, mas sim para dispersá-lo.

Há ainda uma gama de personagens que parecem pedir mais espaço na tela, sem consegui-lo, deixando, assim, uma dúbia sensação a respeito da real dimensão de importância deles em torno dos protagonistas do filme.

Fim de festa entra em cartaz amanhã (5) nos cinemas do Brasil.

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