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Crise em Seis Cenas

A série de Woody Allen: Boa como um longo filme, má como um produto para a tela pequena.

Por Luiz Joaquim | 25.07.2020 (sábado)

Você nunca verá uma série para a pequena tela como esta: Crise em seis cenas (EUA, 2016), feita por encomenda a Woody Allen pela Amazon Studios. Antes de ser fritado em 2018 pelo CEO do estúdio que nasceu da Internet, Jeffrey Preston(*) – sob influência das alegações contra Allen durante o movimento #MeToo -, o oscarizado diretor de Noivo neurótico, noiva neurótica havia entregue a Amazon este trabalho incomum em sua longeva carreira.

A série (a primeira escrita por Allen), cômica ao seu modo, é curiosamente um dos produtos mais engajados, politicamente falando, feito pelo baixinho de Nova Iorque. Outra curiosidade: pode se dizer que Allen revisita aqui um de seus primeiros trabalhos, Bananas (1971), quando ainda se familiarizava com o cinema. Só que, em Crise… a sofisticação e objetivação política está em primeiro plano, acima da comédia. Ou, o que é muito sofisticado, está em função da comédia.

Explica-se assim: O personagem politicamente alienado de Allen em Bananas, Fielding Mellish, é quem carregava todo o filme quando decidia ir a um pequeno país sob domínio militar na América Latina para provar a sua namorada que ele podia ser engajado. Em 2016 o equivalente a Fielding é o jovem Alan (John Magaro). Aqui, sua participação é pequena, ganhando destaque, dessa vez, a jovem militante por quem se apaixona e o faz pensar em ir a Cuba lutar por “um mundo melhor”. Allen dá mais espaço à voz, no século 21, da jovem militante Lennie (Miley Cyrus, neste que talvez seja o trabalho mais politizado já feito pela moça, no passado e no futuro).

O tom político está já nas cenas iniciais de abertura do episódio #1, com imagens de arquivo dos anos 1960, com afro-americanos sendo massacrados e lutando pelos direitos civis, com a comunidade alternativa pedindo pelo fim da guerra no Vietnã (abertura que remete imediatamente a um trabalho de um outro nova-iorquino, que só seria feito quatro anos depois: Destacamento blood, 2020, de Spike Lee).

No meio de uma intensa instabilidade social, temos o septuagenário escritor de classe média Sidney J. Munsiger. Interpretado por Allen (então com 80 anos!), neste que pode ser sua última aparição como ator em obra dirigida por si mesmo, o nome do personagem é uma brincadeira com o de J. D. Salinger – uma piada que ganhará força no 6º e último episódio.

Casado com a terapeuta matrimonial Kay (Elaine May), Sidney ganhou a vida como publicitário e representa no enredo de Crise… a corporificação do capitalismo. Ele será o constante opositor da jovem militante procurada pela polícia, Lennie, que se refugia na residência do casal de idosos até conseguir escapar para a ilha de Fidel.

Nas diversas discussões entre Lennie e Sidney estão variações sobre a necessidade de sair do lugar de conforto, em frente à televisão, apenas como observador da revolução, para atuar nela, até o absurdo que é Lennie roubar da geladeira o sagrado achocolatado e biscoito goiabinha de Sidney.

Discussões sobre revoluções latino-americanas, a Guerra do Vietnã e a posse do biscoito goiabinha

Uma das mais brilhantes circunstâncias criadas por Allen nesse libelo sobre a conscientização política, é que ele não deixa os idosos de fora desse processo – exceto por seu personagem, que só irá “acordar” nos momentos finais do último episódio.

Além da esposa Kay, que começa a ler e admirar Mao Tse-Tung por conselho da menina revolucionária que hospeda em casa, há as velhinhas do clube de leitura que acontece semanalmente sob a coordenação de Kay. À medida em que a série corre, as septuagenárias e octogenárias da classe média vão se entusiasmando ao tomar conhecimento, ainda que de forma atrapalhada, da excitação que é lutar por uma causa social.

Há uma pérola no episódio #4, quando elas começam a discutir as citações de Mao no clube de leitura e descambam para a moda, depois questionam por que mandar os netos lutarem no Vietnã, daí entram pelas preferências nos tipos de chás, até decidirem fazer um protesto na cidade, deitadas na rua, nuas. No planejamento, enquanto uma informa que vai levar biscoitinhos de aveia, outra avisa, feliz, que vai queimar seu sutiã.

ESTRUTURA – Crise em seis cenas não segue a lógica da estrutura de séries como a conhecemos. Não há tensões e soluções específicas pensadas para cada um dos episódios, com a habitual sugestão de tensão para o episódio seguinte. O que parece é que Allen fez aqui o que faz nos seus filmes. Dirigiu uma peça única (com um total de 2h20min.) e a dividiu em seis partes variando, cada uma, entre 23 e 24 minutos.

É tanto assim que, como série, Crise… não funciona muito bem. Os dois capítulos iniciais, típicos da apresentação de personagens, concentram-se muito nesse aspecto, sobrando pouco à sedução do espectador quanto ao quesito ação (sem contar que os protagonistas são dois septuagenários conservadores dos anos 1960 – o que não deixa de ser algo ótimo, desde que sob mãos certas, como as de Allen).

O final dos episódios iniciais, despudoradamente encerrando sem a criação de um clímax para o episódio seguinte, é pouco estimulante, o que torna Crise…, portanto, mais atraente como uma peça única, um extenso longa-metragem. Se visto assim, pode ser bem vista entre as cerca de 50 obras do neurastênico mais admirado do cinema.

Lá no finalzinho do último episódio, Sidney, na cama, prestes a dormir, reflete com Kay se não deveria deixar de lado o sitcom que está escrevendo para a tevê para se dedicar a um novo livro. É a semente deixada nele pela passagem da jovem militante com quem tanto implicava. E quase dá para ver ali o próprio Allen se questionando se poderia fazer algo que realmente achasse grandioso, como os filmes de Bergman e Fellini, que tanto admira.

E, me apropriando da histórica expressão usada pelo crítico Celso Marconi, digo sobre Crise em seis cenas: Vale!

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(*) Por conta da ‘fritada’ recebida pela Amazon Studios, Allen moveu uma ação contra a empresa pela quebra de contrato ao bloquear, nos EUA, a distribuição do então já concluído Um dia de chuva em Nova York e por impedir que ele dirigisse outros três filmes predefinidos pelo contrato. Allen ganhou a ação em novembro de 2019, que discutia valores de US$ 68 milhões

Para ver Crise em seis cenas clique aqui.

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