Martin Eden
Dores e martírios no caminho em busca da arte num dos mais fortes filmes do ano
Por Felipe Berardo | 11.09.2020 (sexta-feira)
Um dos nomes promissores atualmente do cinema internacional contemporâneo é o cineasta italiano Pietro Marcello que foi apontado por Bong Joon-Ho numa lista publicada na revista Sight and Sound como um dos 20 cineastas a se seguir nessa nova década. Grande parte desse interesse criado surgiu do drama histórico e político Martin Eden (idem, 2019, Itália, França, Alemanha) que foi aclamado pela crítica e premiado na categoria de Melhor Ator no Festival de Veneza de 2019.
O filme é uma adaptação livre do romance autobiográfico de mesmo nome do escritor americano e ativista social Jack London que trata sobre a figura de Martin Eden, um jovem trabalhador que tenta ascender financeiramente seguindo seu sonho de tornar-se escritor de forma autodidata e casar-se com Elena (Jessica Cressy), nascida numa família rica. Essa jornada que o protagonista acredita ser pela busca por sucesso e amor, no entanto, logo revela-se como um caminho falso em que segue-se apenas dinheiro e as regras impostas pelos que o tem, restando ao fim apenas a caridade e a autodestruição como forma de recompensa para lidar com a perda de sua autonomia ao conformar-se com o mundo.
Seja na busca pelo seu amor e relacionamento com Elena pelo qual tem que provar-se apto por diversas provas impostas pela amada, por uma extensão dos valores capitalistas da família dela, ou pela busca de conseguir transformar sua paixão pela escrita em algo economicamente viável para justificá-la, o protagonista ignora quase toda felicidade encontrada durante o período em que o trabalho manual é necessário como forma de sobrevivência. Tudo que vive na trajetória até esses objetivos alcançados parece ser visto pelo personagem como apenas condição temporária e passos necessários para o sucesso que descobre mais tarde não ser o que queria.
A atuação premiada de Luca Marinelli é importante na representação central dessa jornada sendo capaz de irradiar altivez e emoções na juventude até chegar na completa ira e alienação da figura decadente e quase vampírica que se torna na segunda metade da vida. O ator passa por uma transformação física para essa segunda parte, mas realmente memorável é a separação entre a capacidade de vulnerabilidade emocional quando jovem transformada numa figura que quase não é mais humana, incapaz de falar e viver se não através do intelectualismo que tanto romantizava.
O filme é o segundo longa ficcional do diretor que passou boa parte das duas décadas passadas realizando documentários e filmes experimentais, algo perceptível aqui pelas ousadas decisões formais e estéticas adotadas durante o filme como a utilização de imagens de material de arquivo em meio às gravações filmadas em Super 16mm. São caminhos audiovisuais idealizados pelo cineasta que permitem de forma palpável tanto uma qualidade lírica e dramática como adaptação de um romance clássico quanto também uma lógica temporal e histórica muito própria que intensifica a força política do filme.
Esse fluxo temporal indefinido é criado pelas imagens de arquivo utilizadas que se estendem do início do século 20 até tempos mais recentes, mas também pela direção de arte e trilha sonora que negam-se a limitar-se a uma época específica, utilizando-se de estéticas contrastantes e até de anacronismos para evitar respostas. O longa apropria-se de elementos narrativos do drama histórico não apenas para manter-se numa dramatização em época diferente, mas para criar algo historicamente e politicamente relevante a todo um século, mesmo quando uma guerra passa a ser citada por personagens e parece abrir espaço para algo mais definitivo, percebe-se logo que não é algo específico, mas sim um conflito maior e mais abrangente.
Esse conflito é econômico e ideológico com uma grande importância dada ao embate entre socialismo e capitalismo, não à toa na cena final em que a guerra é amplamente anunciada vemos personagens negros pela primeira vez no filme. A principal questão levantada, então, é se esse intelectualismo e arte pela qual tanto se preza e discursa seriam necessariamente incompatíveis com valores políticos e revolucionários? A arte como profissão e atividade remunerada, ou seja, realizada dentro dos espaços permitidos pelos sistemas vigentes está presa à condição de objeto de apreciação da atual aristocracia sem real poder para mudanças?
No começo do filme, Martin Eden recita um poema sobre como sua força individual é a única que tem para combater o mundo, suas palavras como instrumentos de luta enquanto não fosse dominado. Acredita que o conhecimento e a linguagem que domina são libertadores e mais fortes que a opressão aprisionadora do mundo, mas ao fim está derrotado e dominado dentro dos sistemas em que nasceu ainda assim. As palavras que diz enquanto jovem, mesmo sem perceber ou entender exatamente, parecem dar a resposta que só se percebe e entende ao final do filme: “Cultura e emancipação não tem nada a ver um com o outro”.
Martin Eden é um longa narrativo ousado formalmente como poucos no circuito atual de festivais, repleto de aparentes contradições das quais surgem significados e autorreflexões políticas de tanta força quanto sua excelência e inovação dramática e audiovisual.
O filme pode ser visto até às 22h de hoje (11) através do Festival de Cinema Italiano 8 ½.
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