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Críticas

Ilusões Perdidas (2021) – texto #1

“O abacaxi nos salvará da poesia”, disse um homem poderoso e iletrado.

Por Luiz Joaquim | 05.06.2022 (domingo)

As imagens de abertura de Ilusões perdidas (Illusion Perdues, Fra., 2021), adaptação da obra-prima de Honoré de Balzac dirigida por Xavier Giannoli, são chocantes. Não no sentido do horror que o cinema escancaradamente comercial tem gosto, e sim no sentido do belo: da fusão da arte com a natureza (e não teria a arte a pretensão, entre outras, de promover o encantamento proporcionado pela natureza?).

A composição plástica da abertura é clara e feliz: primeiro, o plano está fechado numa caderneta com anotações para uma poesia. O livreto cobre a luz do sol e, depois, temos um plano aberto mostrando o seu autor, o jovem provinciano e plebeu Lucien (Benjamin Voisin), extasiado sobre a relva após, sabemos posteriormente, ter deitado ali com sua amante, da nobreza, Mme. Louise de Bargeton (Cécile de France).

Interessante pontuar que as primeiras imagens de um filme geralmente são reveladoras do que está por vir na jornada do espectador se aventurando pela obra. E Giannoli, mais conhecido por aqui pelo seu simpático A aparição, é certeiro no cuidado com as imagens na abertura desse seu novo trabalho

Certeiro porque em Ilusões perdidas o belo, na forma da poesia, é o ponto de partida que tira o protagonista de seu lugar, na província de Angoulême, para tentar alcançar algo maior na sedutora e perigosa Paris da primeira metade do século 19.

O perigo lá se apresenta de imediato, quando, tentando entrar na então capital do mundo pela porta da frente, pelas mãos da amante, dá de cara com o muro que se ergue entre a sua origem e a nobreza. Tendo que pagar as contas, Lucien coloca em stand by as pretensões literárias para trabalhar na então nascente, crescente e rentosa, digamos, imprensa marrom de Paris. É nesse quesito que a adaptação criada por Giannoli, coroteirizada por Jacques Fieschi e Yves Stavrides, mostra sua pertinência, atualidade e sedução.

Alguém poderia perguntar por que produzir uma nova adaptação do clássico de Balzac quase 200 anos após lançado. A pergunta seria equivocada já em sua concepção, se considerarmos que um clássico, verdadeiro, não tem idade.

Giannoli demonstra isso com uma fluência envolvente ao ressaltar, na triste trajetória do ingênuo e depois corrompido Lucien, a sua vilania empunhando a pena que massacrará a todos que não concordam com ele, ou simplesmente elogiará aqueles que lhe pagam mais, literalmente em francos, para tanto.

Lucien (Benjamin Voisin) atraído pelo “amigo”  Lousteau (Vincent Lacoste) para a sedução do jornalismo corrompido.

Mais ainda, a atualidade que Giannoli destaca aqui demonstra, numa cadência inebriante (mérito não apenas para o sublime texto de Balzac, mas para as opções da adaptação), o quanto o conceito de fake news, que tanto move e revolve este início do século 21 no campo da política e da celebridade-futilidade, já o fazia igualmente no início do século 19.

A começar pelo pernicioso Singali (Jean-François Stévenin), figura influente no cenário teatral de então, capaz de enterrar ou elevar às alturas uma nova peça em estreia, com a sua ‘claque’ treinada para vaiar ou aplaudir (conforme lhe pagam) nos momentos chaves. Mais temido do que a crítica jornalística séria, pois os efeitos de seu trabalho comprado são imediatos na plateia desavisada, Singali poderia ser comparado hoje a alguns influenciadores digitais, contratados para inflar lançamentos ou festas medíocres neste oceano virtual da internet, mas surtindo efeito real na trajetória das produções e dos eventos culturais.

O trabalho de Giannoli, em termos de cutucada com a origem e o espelhamento das mazelas do passado com as de nossa vida social de hoje, parecem ser incontáveis aqui. A própria figura de Dauriat (Gérard Depardieu), o iletrado, mas afiado investidor, chefe de uma editora influente, é exemplo disso. Sai da boca dele uma das mais belas sínteses sobre o desdém desse homem pela arte, apesar de ser ela que mantém o seu status social: “O abacaxi nos salvará da poesia”.

Síntese, a propósito, está na lista de competências daquele que se dedica à arte das palavras como Balzac, e numa delas, aproveitada pelo filme, nos é revelado em poucas linhas como começou a se encaminhar o jornalismo duvidoso há 200 anos com reflexos até hoje. Aparece na conversa entre o chefe Finot (Louis-Do de Lencquesaing) e o editor-geral Lousteau (Vincent Lacoste) do jornal liberal e corrupto onde trabalha Lucien.

Eles acenam para a publicidade como uma prostituta acena para um cliente visando “aumentar os anúncios, diminuir o preço do jornal, alcançar mais leitores” e, consequentemente, tornar-se mais influente para, logo, ser mais temido.

Ao fundir dois de seus jornais liberais, Finot celebra com os colegas na redação gritando: “Nosso novo jornal tomará como verdade absoluta tudo o que é provável”. O que poderia ser mais atual em 2022?

Balzac é obrigatório nas escolas francesas como Machado de Assis o é por aqui. Essa adaptação cinematográfica ágil e focada na prostituição intelectual que se tornou nossa moderna comunicação midiática deveria ser obrigatória nos cursos de jornalismo do Brasil.

Xavier Giannoli, diretor da nova adaptação para “Ilusões Perdidas”

Já que a leitura não é um forte do brasileiro, que ele ao menos se deixe encantar pela ascensão e decadência de Lucien pelas mãos de Xavier Giannoli com seu belíssimo filme. Ganhará o espectador, ainda, a chance de se emocionar com a constatação de um amor – entre Lucien e Louise – impedido por regras sociais e, por ela, envenenado. É duro e é triste.

Em tempo: Ilusões perdidas concorreu no Festival de Veneza em 2021 e ganhou sete Césars (o dito Oscar francês) da edição 2022 como melhor filme, direção de arte, figurino, fotografia, roteiro adaptado, ator revelação (Voisin) e ator coadjuvante (Vincent Lacoste).

Para ler a crítica de Humberto Silva para Ilusões perdidas, clicar aqui

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