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Críticas

Doutor Sono

Uma literalização cinematográfica com pequenas vinhetas de conexões folgadas

Por Felipe Berardo | 07.11.2019 (quinta-feira)

Doutor sono (Doctor sleep, EUA, 2019) é a mais nova produção contemporânea que segue a lógica das sequências cinematográficas tardias, especificamente aqui o filme surge 39 anos após o longa original e traz de volta aos cinemas não o universo de um blockbuster com potencial monetário de franquia subaproveitado pela indústria, mas sim de um aclamado clássico que não foi um particular sucesso de bilheteria em sua época. O filme original, no entanto, conseguiu cementar-se não só no imaginário popular relacionado ao gênero de terror, mas também no espectro mais amplo possível dentro do universo cinematográfico como um todo e, partindo disso, manteve-se como obra relevante e frequentemente revisitada mesmo quatro décadas depois. Esse filme, claro, é O iluminado (1980), dirigido por Stanley Kubrick.

Tanto O iluminado quanto Doutor sono são baseados nos respectivos livros homônimos de Stephen King, no entanto o clássico de Kubrick é notoriamente conhecido por desfazer-se de diversos elementos da obra em que é inspirado, permitindo que pontos temáticos e informações importantes revelem-se ao espectador apenas através de subtexto, sem que haja descrição clara desses elementos. Através dessa simplicidade estrutural e de roteiro cria-se um cenário favorável ao clima perturbador e desconcertante tão memorável no primeiro filme, algo que imediatamente mostra-se como a diferença fundamental quanto a Doutor sono, já que o diretor e roteirista da sequência, Mike Flanagan (Jogo perigoso; A maldição da residência Hill), parece mais interessado em literalizar as ideias anteriormente ambíguas e turvas como “o brilho” ou “o vapor” e esclarecê-las, as recontextualizando para uma narrativa fantástica, quase como se criando uma versão mais adulta de Harry Potter a partir das mesmas formulações.

Nesse sentido, o filme assemelha-se também a Blade runner 2049, uma outra sequência tardia e improvável de um clássico, que tem como principal interesse trazer o subtexto de seu original para a superfície, explicitando conceitos e ideias que instigavam e comoviam mais enquanto escondidos do que quando abertamente disponíveis para plena compreensão. Ao menos aqui Flanagan parece colocar-se primeiramente como realizador de filmes de gênero, evitando a tão presente austeridade do filme de Denis Villeneuve, no entanto também não parece conseguir inserir com muita força no longa os elementos presentes em seu cinema com os quais melhor trabalha. 

Alguns pontos ainda são representados de forma mais proeminente como na linha tênue e eventualmente híbrida criada entre fantasia e terror, interessa bastante o grupo de vilões “O verdadeiro nó” e as cruéis interações com suas vítimas. Nesse sentido, o terror torna-se particularmente potencializado pelo fantástico aqui que é aliado a uma realidade própria com consequências violentas e palpáveis como mãos esmagadas e lâminas cortando carne. Já outros elementos interessantes da filmografia do diretor parecem perder-se quase completamente durante o filme como seu talento para a elaboração de peso dramático através de imagens costumeiramente associadas a filmes de terror, quase não presente no filme a não ser por uma pequena cena em que uma aparição cadavérica parece mais preocupada com o bem estar de seu filho que em assombrar os personagens.

Quanto ao que está realmente posto no filme apresentado, no entanto, há problemas de ritmo e coesão na primeira metade da longa duração final de 151 minutos, visto que o longa-metragem, ao tentar adaptar o livro fielmente, adota uma estrutura quase como de pequenas vinhetas não muito conectadas entre si. São estabelecidos três focos narrativos separados e mais de uma vez se passam períodos longos de tempo na vida dos personagens sem permitir tempo para investimento emocional no que acontece, o filme continua alternando entre suas frentes narrativas sem outra motivação aparente que não a própria necessidade de adaptar a próxima cena do livro.

Eventualmente esses pulos temporais cessam e todos os personagens convergem ao mesmo ponto, conectando-se para criar uma unidade dramática mais própria em sua segunda metade que facilita muito o investimento de quem acompanha a história. Ao final, tudo gira em torno da superação pessoal e com o lidar de Danny Torrance (Ewan McGregor) com os traumas criados há tanto tempo no Hotel Overlook. Então, nada mais apropriado que o clímax do filme se passe no macabro local.

 Há um certo valor de pastiche inerente na reconstrução de um espaço tão icônico do universo do cinema, algo levado às últimas considerações na sequência que passa-se no hotel em Jogador Nº1, mas Flanagan está ciente disso, até refazendo planos clássicos e imitando decupagens de cena. Ainda assim, porém, há uma força inegável em ver um Danny adulto andando pelos corredores daquele lugar, há tanto tempo adormecido, que volta a acender-se para receber as memórias e os traumas do personagem e do público. A catarse final, então, é alcançada não pelo final otimista relacionado a pós-vida, mas pelo perceber de que esses traumas podem nunca serem superados, mas ao menos podem ser redirecionados para o crescimento pessoal das vítimas e aqui isso é o suficiente.

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