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Festivais

26º ETV (2021) – “Evento de TV”

O que aconteceu quando o fim do mundo passou na televisão? O doc. revê o impacto de “O Dia Seguinte”.

Por Luiz Joaquim | 12.04.2021 (segunda-feira)

Antes de começar propriamente a desdobrar algo sobre Evento de TV (Television Event, Aus./EUA, 2020), filme do diretor Jeff Daniels (não confundir com ator homônimo) que está na programação online do 26º É Tudo Verdade: Festival Internacional de Documentários, permitam que eu traga um depoimento pessoal.

Inicio assim, incomumente na primeira pessoa do singular, para contar um caso particular. Isso porque Evento de TV é um doc. não apenas sobre a saga da feitura de um telefilme produzido pela rede norte-americana ABC no início dos anos 1980, mas também sobre os efeitos em quem o assistiu.

O telefilme trata, particularmente, da dificuldade em conduzir a produção em função de algo imponderável: Como o telespectador receberia, na sala de sua casa, o impacto apresentado pelas imagens exibidas em canal aberto de O dia seguinte (The Day After, EUA, 1983). O filme-catástrofe dirigido por Nicholas Meyer que jogaria na cara do público o que restaria da terra caso os dois principais líderes mundiais de então – Ronald Reagan e Iúri Andropov – apertassem o botão vermelho, liberando as temidas bombas nucleares da Guerra Fria.

Anúncio da exibição na TV de “O Dia Seguinte”

Para a felicidade dos executivos de ABC, O dia seguinte viria a ser tornar algo maior que um telefilme. Tornou-se um evento televisivo com cerca de 65% dos televisores norte-americanos sintonizados naquela noite, naquele canal, para assistir ao filme numa única exibição, entre às 20h e 23h (originalmente foi pensado como uma telesérie de quatro episódios).

Foram cerca de 100 milhões de telespectadores atingidos de uma única vez. A repercussão, avassaladora, estimulou a ABC a disponibilizar o filme também nos cinemas. A obra ganhou o mundo, sendo projetada em cerca de 35 países, de 17 idiomas diferentes. Outro feito: foi o primeiro telefilme norte-americano exibido na televisão soviética.

O Brasil foi um destes países, e o filme entrou em cartaz no Recife num 19 de janeiro de 1984 sob uma enorme expectativa, considerando o eco que os jornais locais reverberavam dos EUA já há dois meses. Na capital pernambucana, a sala do lançamento foi o Moderno, na praça Joaquim Nabuco.

Reprodução, Diário de Pernambuco, 24 de janeiro de 1984.

Antes da estreia, especulações previam que o filme teria censura (era esse o termo que se usava e não ‘classificação indicativa’) 18 anos. Mas, foi lançado com censura 14 anos. Eu, ali, precisava de mais quatro meses para completar a idade mínima permissível para ver o filme. Eu sabia, porém, que O dia seguinte não iria me esperar aniversariar para sair de cartaz.

Não era incomum, para este que aqui escreve, arriscar entrar em salas de cinema com filme de classificação imprópria. Havia um golpe muito comum entre a molecada – golpe criminoso inclusive – em que se raspava o último número do ano de seu nascimento na carteira de estudante e datilografava-se outro por cima para dar a entender, ao porteiro do cinema, que você era mais velho do que realmente era. A falcatrua era tosca e, habitualmente, os minideliquentes tinham suas expectativas frustradas.

No meu caso, eu apenas torcia para que o porteiro acreditasse que eu tinha 14 anos completos. E, na tentativa para O dia seguinte, deu certo.

Para resumir, vi o filme na semana de estreia, sozinho, mas num Moderno com lotação esgotada. E lembro da tensão crescente que o filme promovia, levando não a um final feliz, como habitualmente eu entendia o cinema de Hollywood, mas sim levando a uma fatalidade coletiva, pondo fim ao destino dos personagens. Foi impactante.

Ainda que impactante, O dia seguinte não foi exatamente um sucesso no Recife. Apesar da grande procura na primeira semana, o filme não foi uma unanimidade, mesmo tendo permanecido em cartaz por um mês.

As pessoas pagavam para ver um espetáculo do gênero cinema-catástrofe, nos moldes das grandes referências de então: O destino do Posseidon (1974); Terremoto (1974); Inferno na torre (1974); ou a franquia Aeroporto (1970 a 1977). Mas o que encontraram n’O dia seguinte foi uma obra mais interessada no aspecto político da questão, e não no do entretenimento.

O DOCUMENTÁRIO – O jovem diretor de Evento de TV, Jeff Daniels, vive em Melbourne, Austrália, mas nasceu em Nova Iorque e quando criança ou adolescente, provavelmente viu na sala de sua casa, na noite de 20 de novembro de 1983, a famigerada transmissão de O dia seguinte.

Com o distanciamento histórico de quase 40 anos, Daniels se permite tocar essa história de bastidor da produção do filme incluindo humor.

Ele (o humor) está exatamente na forma como Daniels intercala os depoimentos do roteirista de O dia seguinte, Ed Hume, de seu produtor Robert Papazian e, principalmente, de seu diretor, Nicholas Meyer,  contra os depoimentos dos executivos da ABC à época.

São depoimentos de hoje interagindo com entrevistas tensas da emissora feitas no pré-lançamento em 1983, incluindo também trechos de O dia seguinte para ilustrar a guerra interna que significou para a emissora colocar o filme no ar.

Com o filme pronto, e toda a violência visual e psicológica que apresentaria para uma potencial plateia já paranoica com a explosão nuclear (cerca de 75% da população dos EUA acreditava que cedo ou tarde aconteceria), o departamento jurídico da TV se negava a liberar a exibição. O departamento comercial também temia retaliações, com eventuais boicotes no futuro de patrocinadores da emissora. O próprio governo norte-americano se meteu no assunto, tentando picotar a versão final que iria ao ar.

Still de “O Dia Seguinte”

Há espaço também, em Evento de TV, para sabermos o quão impactante foi para os residentes da locação do filme – a pacata cidade de Lawrence, no Kansas (EUA) –, a chegada da equipe de filmagens para transformar suas ruas numa espécie de Hiroshima norte-americana.

O documentário encerra com a grande repercussão social de O dia seguinte, com debate televisionado envolvendo nomes como Henry Kissinger, Carls Sagan e William F. Buckley entre outras personalidades respeitadas no mundo.

Jeff Daniels dá, enfim, com seu doc., uma dimensão rara, mas concreta, de como um filme (no caso, um telefilme, gênero cuja escala de influência era extremamente menor que a de filmes para o cinema) pôde (e pode) influenciar uma geração e até a postura de um governo. Não é pouco e, no caso de Evento de TV é também divertido.

Em tempo: Nos anos 1980, a expressão Day After (graças ao filme) se popularizou como sinônimo de ressaca ou de arrependimento inevitável no dia seguinte que você encontraria após ter feito uma grande besteira no dia anterior. 

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