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27º É Tudo Verdade: História da Guerra Civil 

Um Vertov menor, mas nem por isso menos importante

Por Ivonete Pinto | 05.04.2022 (terça-feira)

História da guerra civil  (1921) é um filme de propaganda, como foram todos os filmes soviéticos, com ou sem poder de invenção. Da sua capa jornalística temos apenas as imagens captadas no calor da hora, pois seu texto não deixa dúvidas quanto ao teor promocional ufanista. Quando Vertov anuncia a tomada de Baku, capital do Azerbaijão, como uma república socialista soviética, a expressão usada é “Baku foi libertada”. Sabemos… Putin  quer libertar a Ucrânia também.

Para adentrar ao filme do lendário Dziga Vertov, vamos fazer algumas voltas, em movimentos para trás e para frente na história deste País que amamos tanto (especialmente por causa de sua literatura), mas que nem por isso nosso olhar é menos crítico a certos acontecimentos e a certos procedimentos de seus cineastas, no caso aqui, deste documentário sobre a guerra civil russa (1918- 1920). Considerado desaparecido desde então, o filme  foi reconstituído por Nikolai Izvolov e acaba de ser exibido no Brasil pelo Festival É Tudo Verdade.

O livro Como ler os russos, de Irineu Franco Perpetuo, é bem sugestivo quando pensamos no cinema russo. Se nos parece evidente que não se trata mais de por que ler os russos, ou os clássicos, dada a importância inegável quanto a posição que a literatura russa ocupa no mundo, passa-se à etapa seguinte, que é como ler os russos. Com o cinema da Rússia também podemos fazer este exercício, porque sua relevância é inconteste, mesmo que estivéssemos falando “meramente” de uma revolução na linguagem.

E é com este ânimo que podemos encarar História da guerra civil, pois que não há como ignorar seu entorno histórico, para além do tema central.

Vertov

O que Dziga Vertov opera ali está vinculado ao que se fazia em sua época, nas circunstâncias que o permitiam. Vale notar que ele pertence ao período das vanguardas que surgiam no seio da revolução soviética, em que a literatura, o teatro, a pintura, a música e o cinema espelhavam a ideologia em transformação. Estética e linguagem andavam em frenesi  até a subida de Stalin ao poder (1922), quando o realismo socialista imposto pelo regime engessou corações e mentes.

O documentário de Vertov, diferente de Um homem com uma câmera (1929), é de uma pobreza de vigor a olhos vistos. O diretor contentou-se em juntar imagens e isto nos faz conjecturar que pode ser o resultado de certa influência do que acontecia na literatura à época.

Não se pode atribuir a uma censura esta falta de astúcia na forma do filme, já que o Estado ainda não obrigava a uma estética única. O próprio Trotski, que organizou o Exército Vermelho, “personagem” central do filme, rejeitava quem se dispusesse a somente descrever o que acontecia, que é o que Vertov fez. (Conforme Irineu Perpetuo, Trostki disse, em relação ao poeta Iessiênin, que ele não fazia parte dos escritores “carreiristas literários que aos poucos se põem a descrever a Revolução”, p. 165).

É do livro de Perpetuo que nos vem uma possibilidade de interpretação sobre a fatura narrativa de Vertov neste documentário. O autor, citando Georges Nivat, lembra  o caso do escritor contemporâneo de Vertov, Boris Pilniák (1984-1938), que teria criado um novo gênero literário, o “romance a granel”. Nele, só materiais vindos da vida mesma são utilizados, sem relação entre eles, apenas justapostos.

O empilhamento de dados esparsos praticado por Pilniák pode ser uma pista para enxergarmos o uso de imagens de Vertov. Os arquivos da guerra civil usados na montagem, evidentemente têm relação entre si; são imagens sobretudo do Exército Vermelho, seus líderes e cenas de campo de batalha do período da guerra A questão  é que não há um olhar perscrutador por trás das decisões a não ser a cronologia dos fatos. Não há as costuras, muito menos o ritmo que resultava dos cortes rápidos de Um homem com uma câmera, um filme com uma clara tese já indicada no título, que relaciona o ser humano com as máquinas, especialmente as máquinas de fazer filmes (câmera e moviola) e toda uma gama de metáforas que surge dali.

Diferente de Pilniák, tido como homem  de temperamento exuberante e cínico, Vertov não teve impetuosidade  para problematizar as imagens. Naturalmente, se ainda não vigorava a censura stalinista, estamos falando do já ideário de uma nação em torno da construção do socialismo e Vertov podia estar pura e simplesmente disposto a reverenciar a guerra. Podemos imaginar também que Nikolai Izvolov, ao recuperar fragmentos encontrados em diferentes arquivos,  e seguindo as orientações do cineasta Grigory Boltyansky, pode ter impresso sua necessidade de “neutralidade”, impingindo um ordenamento frio e calculista que o original talvez não tivesse. Sabe-se, inclusive, que algumas imagens não foram encontradas, como uma em que Stalin apareceria. O líder georgiano veio a ser  Secretário Geral do Partido Comunista só a partir de 1922. Vai ver não era importante mesmo quando Vertov finalizou a obra.

Cena de “História da Guerra Civil”

Expositivo – Dziga Vertov foi indiscutivelmente inovador em Um homem com uma câmera e  este documentário de 1921  está sendo vendido como experimental. Difícil concordar com isto. Experimental ele vai ser em 1929. Em História da guerra civil, Vertov, mesmo praticando a propaganda, é apenas “expositivo”, para ficar nas categorias propostas por Bill Nichols. Ou seja, reúne fragmentos do mundo histórico, atentando mais à retórica do que à estética. Pode ser sim vinculado ao cinejornal de atualidades em que trabalhou por anos. Até sua (considerada) discípula, Esfir Shub, desenhava uma montagem de arquivos com mais criatividade. O único momento em que há uma quebra no padrão narrativa convencional é quando lança mão de uma animação para ilustrar o avanço do Exército Vermelho à cidade tártara de Kazan. Ela representa  um alívio mental em meio à quantidade de informações despejadas pelos intertítulos explicativos. É quando também nós, 100 anos depois e no contexto da atual guerra, projetamos na sequência animada o avanço atual da Rússia  em território ucraniano. Esta guerra que, aliás, dada a proximidade histórica, étnica,  cultural e familiar, também não deixa de ter os contornos de uma guerra civil.

Também chama a atenção a sequência sobre a inspeção a um regimento muçulmano. Ela nos remete à guerra da Chechênia, de maioria muçulmana, que após tantas batalhas pela independência, ironicamente acaba agora se unindo a Putin contra a Ucrânia.

Lançador do estilo kino pravda (cinema verdade, no caso, o cinema direto), Vertov foi neste documentário na melhor das hipóteses, um jornalista, enquanto em Um homem com uma câmera foi um poeta. Ambas facetas têm seu valor, porém a contribuição ao cinema está mais na segunda, com sua carga de reflexão e lirismo. Para não dizer que História da guerra civil é só medíocre, há um plano bastante inspirado. Quando  mostra um caixão sendo largado em uma enorme vala comum, a câmera sobe lentamente num movimento horizontal da vala para a cúpula de uma igreja, no que parece ser a Catedral de Santo Isaac, no coração de São Petersburgo. Não há intertítulos e isto nos oferece um momento raro para reflexão.

O famoso manifesto de  Vertov, o  cine-olho, é de 1924, onde pregava uma concepção teoricamente sofisticada em que o cine-olho seria aquilo que o olho não vê. Assim, em 1921 e com o tema da guerra, ele ainda não praticava o cine-olho, entretanto, podemos supor que o movimento da câmera já insinua que algo pode estar fora do quadro, pois problematiza o próprio sentido da guerra.

Guerras são feitas para defender interesses de grupos. Podem ser grupos amplos ao ponto de serem chamados de população, ou grupos pequenos, ao ponto de serem chamados de empresários. Os governos às vezes estão de um lado, às vezes de outro, difícil que estejam com os dois grupos ao mesmo tempo.

O que  incomoda em um filme feito enquanto a história era feita, é seu grau de certezas, com direito a patriotadas: “As armas ainda não silenciaram, mas o poder soviético já está restaurando a economia destroçada”. Frase que conseguimos vislumbrar nos próximos dias no cenário da guerra da Ucrânia. Absolyutno.

A URSS, em primeiro plano a Rússia,  virou uma máquina de guerra, sempre apta e motivada para brigar. Isto não vem de 1917, mas de muito antes. Por isso, talvez, exista a máxima de que russos possuem uma necessidade congênita de se mostrarem fortes, em qualquer situação. Algo no DNA, marcado por conflitos que remontam ao Rus e não dá trégua. Estendem isto aos esportes, onde disputam para ganhar  a qualquer custo, não importa muito os anabolizantes usados.

Ainda num esforço para adentrarmos no filme de Vertov e nos colocarmos no lugar dos russos (e dos soviéticos), retrocedendo apenas um pouco na história, é preciso lembrar que a Primeira Guerra Mundial estava em curso quando a  mais importante revolução desde a Revolução Francesa de 1789  tem início, em 1917. Antes da guerra mundial acabar, eles já entraram em guerra civil. Atravessaram o período stalinista guerreando para dominar as 15  repúblicas socialistas soviéticas, tendo sido invadidos pelos alemães em 1941   em batalhas sangrentas como a de Stalingrado. Diga-se, sempre sofrendo  com aquela temperatura do cão. Então vieram Krushov, Andropov, Chernenko, Gromiko,  todos empenhados nas batalhas diárias da Guerra Fria com os EUA; aí, em 1991, veio  Gorbachov e entregou os pontos com a queda do muro de Berlim, e conseguiu a proeza de dar seu lugar a Yeltsin, que enterrou de vez a URSS. Yeltsin, com a política das privatizações faz surgir os abjetos oligarcas e para piorar sua contribuição neste mundo, guinda o sinistro policial  Putin a seu sucessor; Putin  se mete onde não deve (Síria), manda envenenar quem ameaça seu poder imperial e vai ocupando territórios até chegar às portas de Kiev.

E continua…

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