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Críticas

Meu Pai (2020)

Pelos olhos do esquecimento. Estreando no cinema, Florian Zeller concorre a 6 Oscars

Por Luiz Joaquim | 02.04.2021 (sexta-feira)

Meu pai (The Father, GB/Fra.. 2020), o filme de Florian Zeller, dirigido e adaptado por ele para o cinema, é uma dessas ideias tão boas que logo a pergunta lhe vem à cabeça: “Mas por que não pensaram nisso antes?”.

O ineditismo não é o único trunfo aqui. A forma como sua ideia é explorada e conduzida no cinema reforça a boa fama que a peça teatral original homônima conquistou e explica o porquê dela sair do palco para uma tela de… (aqui ia escrever: ‘de cinema’, mas o tempo é o de dizer ‘de smartphone’, ‘de smart-tv’, ‘de um monitor’).

Aos 41 anos, o parisiense Zeller já é reconhecido por mais de uma dezena de peças bem-sucedidas e vem sendo celebrado como um dos mais importantes nomes contemporâneos do teatro no mundo, tendo a sua Meu pai já sido montada em mais de 45 países.

Para criar a versão cinematográfica, estrelada brilhantemente por Anthony Hopkins (Oscar já, para ele!) e Olivia Colman (a eterna rainha Elizabeth das temporadas 3 e 4 de The crown), o teatrólogo não foi bobo nem nada e juntou-se ao oscarizado roteirista português (de Açoures) Christopher Hampton.

Hampton é dono da estatueta dourada de roteiro adaptado por Ligações perigosas. E se você é jovem demais para nunca ter ouvido falar desta versão cinematográfica dirigida por Stephen Frears em 1988, então comece a ver esse filme assim que acabar de ler esse texto.

Então, pelas quatros mãos da dupla Zeller e Hampton, Meu pai, o filme, com sua abordagem original, com seu elenco afiado e com seu texto cuidadoso tem potencial para tornar-se um hit imediato nas palestras dadas por neurologistas e entrar na lista de filmes de pessoas com parentes vitimadas pela falta de memória, com demência, tal qual O sexto sentido tornou-se, eternamente, a primeira lembrança quando o assunto no cinema é a perspectiva dos mortos.

MEU PAI – Assim como no clássico de M. Night Shyamalan, o grande barato de Meu pai é a sua capacidade de fazer o espectador ir percebendo aos poucos aquilo que se sucede diante de seus olhos, sob a mesma perspectiva que se sucede diante dos olhos do engenheiro aposentado Anthony (Hopkins).

Diferente do suspense estrelado por Bruce Willis há 32 anos, Meu pai não guarda revelações surpreendentes para o último momento. O espectador mais atento já vai perceber a proposta criada por Zeller ali pelos primeiros 20 minutos de filme.

Ainda assim, será mais generosa (e difícil de escrever) aquela crítica de cinema que não entregue, de imediato, ao leitor o ouro da construção dramatúrgica de Meu pai. E ela, a dramaturgia aqui, é dona de uma elaboração muito sofisticada. Uma sofisticação que encontrou no cinema, pela dupla Zeller/Hampton, o terreno fértil para erguer uma expressão angustiante sobre envelhecer e perder suas referências.

Anthony é um idoso que ser recusa a ser atendido por qualquer cuidadora que a sua filha Anne (Colman) contrata para tomar conta dele uma vez que pretende mudar-se para Paris e deixa-lo sozinho em seu apartamento em Londres. Uma rara simpatia surge em Anthony pela jovem candidata Laura (Imogen Poots), mas apenas pela aparência da moça lhe trazer uma boa lembrança.

Imogen Poots como Laura, Colman como Anne e Hopkin como Anthony formam as peças desse quebra-cabeça invertido.

‘Lembrança’ aqui é uma palavra chave. Há um crescente embaralho na cabeça de Anthony e esse quebra-cabeça desmontado, que no filme segue um sentido inverso ao do raciocínio humano (que é o de associar coisas para delas criar sentidos), vai em Anthony, a cada dia, ficando mais e mais desconexo. Com as peças mais básicas ficando difíceis de encaixar.

É um pesadelo e nada disso está claro para o espectador do filme, que terá a chance de percebê-lo, individualmente, a seu tempo. Na medida em que perceber as dicas que o roteiro, os personagens, os atores e, principalmente, a direção de arte dá.

Ainda que conte com cenas escritas nas quais o desenrolar dos acontecimentos se dão num apartamento (no passado e no presente), para um consultório médico e para uma clínica geriátrica, toda a cenografia do filme é montada numa única locação.

Há um esforço na direção de arte (de Peter Francis e Cathy Feartherstonte, merecidamente concorrendo ao Oscar) em disfarçar essa estratégia. Mas não muito.

Até porque ela é mais uma ferramenta contribuindo para que possamos ter uma dimensão física, concreta, sobre o terror pelo qual passa Anthony com sua não compreensão do que se sucede a sua volta. Não devemos esquecer da pequena vista da rua, que Anthony tem pela janela de seu quarto, como norte sutil da sua percepção do mundo.

Nesse quesito, a direção de arte, em casamento inspirado com a dramaturgia, encontra ótimos e fundamentais símbolos que embelezam ainda mais a construção desse mundo do protagonista.

O seu relógio de pulso, sempre sumido de sua vista e sempre tão desejado por ele como uma âncora concreta que o aterra a passagem do tempo, uma vez que ‘passagem do tempo’ é também uma ideia que passa a fugir completamente do entendimento de Anthony.

Nesse quesito, um dos mais brilhantes momentos do roteiro mostra uma situação tensa que parece se prolongar por um dia no entendimento de Anthony, mas que se revela para nós, pela repetição de uma pergunta, algo que se deu em nada mais do que 20 minutos de distância temporal.

O apartamento, que vai ficando sem mobília, sem quadros, sem livros, pela aproximação da mudança de endereço de Anne, serve também de referência material – e ilustrativa aos nossos olhos – do vazio de sentido que vai tomando a cabeça de Anthony. O que são memórias sem referências materiais? Ou, o quanto essas referências importam para a longevidade fiel de nossa memória?

Antes de partir para elucubrações neurocientíficas e psicológicas que Meu pai pode sugerir, o importante a dizer ao espectador leigo que ele será envolvido aqui, principalmente, pelo cuidado, carinho e delicadeza com os quais o filme de Zeller se relaciona com esse momento tão frágil e aterrador que pode ser uma velhice mentalmente não sadia. E o quão doloroso pode ser para os filhos verem sua referência de vida desconectadas da realidade.

Hopkins, inspirado como há muito não se mostrava, em cena de “Meu Pai”

De lambuja, ainda temos Hopkins em momento genuinamente inspirado. Livre na alegria de compor esse personagem tão rico em sensações inexplicáveis para si mesmo. Dando à apreciação sobre Meu pai um prazer particular quando ele está em cena. E ele está em cena em 95% das imagens desta obra tão bem resolvida com não mais que sete personagens.

De problema na trama, uma inserção desnecessária no transcorrer da ação representada por um desejo latente da filha em encerrar brutalmente seu sofrimento pessoal. A cena só confunde a cabeça do espectador para provocar um efeito rápido de susto. Efeito já muito cansado e recorrente no cinema, nos dando, pobremente, diante do todo do filme, uma dica sobre o grau de fadiga de Anne.

Meu pai concorre a seis Oscars na edição 2021. Além dos já mencionados, briga no dia 25 de abril também nas categorias melhor filme, atriz coadjuvante (Colman), direção, roteiro adaptado e montagem. Conheça aqui todos os indicados.

O filme fica disponível (‘fica disponível’ é o novo ‘estreia’) na próxima sexta-feira (9) pelas plataformas digitais Now, iTunes (Apple TV), e Google Play. A partir do dia 28 estará também disponível para aluguel nas plataformas Sky Play e Vivo Play. Conforme as mudanças nas condições sanitárias ocorram, ainda há possibilidade de o filme entrar em cartaz nos cinemas (ou não).

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