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Festivais

49º Gramado (2021) – “O que há em ti”

O que é isto?

Por Ivonete Pinto | 22.08.2021 (domingo)

No dia 16 de março de 2020, quando um  haitiano anônimo disparou vitupérios ao presidente da República ocupando um lugar no “cercadinho”, poucos talvez tenham ouvido com clareza uma voz de indignação que vinha dali. Uma voz de mulher surpresa e estupefata: “o que é isto?” Mais do que uma pergunta, é uma exclamação.

No filme O que há em ti (2020),  de Carlos Adriano, exibido na competição de curtas nacionais do 49º Festival de Cinema de Gramado,  o vídeo é repetido mais de uma vez e a exclamação da mulher salta aos ouvidos. No estilo autoral do diretor, a repetição provoca efeito estético e pedagógico. Pela repetição, concatenamos fatos, percebemos inúmeras outras dimensões.

Há muitas camadas neste novo filme de arquivo de Carlos Adriano. Os arquivos digitais provocam experiências diversas de significação e ele tem explorado estas possibilidades em níveis poéticos e políticos com uma contundência ímpar.    Sem Título # 1: Dance of Leitfossil  (2014) e Festejo muito pessoal (2017) são exemplos de um olhar que não rejeita temas, arquivos,  letreiros informativos, músicas das mais variadas origens. Aqui, Terra e Haiti  cantadas por Caetano Veloso  embalam nossa imersão no enredo, ou melhor, ajudam a compor o enredo. Estes  recursos tornam os filmes de Adriano experiências distintas, sempre estimulantes para a mente. Em O que há em ti o tema é o Haiti e é o Brasil. É o Brasil, é o Haiti e todos os povos que de alguma maneira sofrem opressão e que em algum momento precisam reagir.

O Haiti que conhecemos midiaticamente, dos terremotos, das catástrofes humanitárias, da expectativa de vida que não passa dos 60 anos, dos Duvaliers, dos Tonton Macoute (a milícia que tocou o terror  décadas atrás),  no curta de Adriano ganha a faceta da grandeza épica de um povo em formação. O cineasta recorre a Shakespeare, a Paul Robson (o Maiakovski negro, primeiro ator a interpretar Othelo na Brodway sem precisar pintar o rosto de preto), dando uma volta na história do Haiti, de tantos e infindáveis dramas. Muitos artistas e intelectuais já se interessaram pelo país caribenho e sua religiosidade codificada (o vodu  é algo impenetrável até por culturas como a nossa, impregnadas  de rituais afro).

Adriano, a propósito deste contexto, por meio das imagens do documentário Cavaleiros Divinos – Os Deuses Vivos do Haiti faz uma bonita homenagem à Maya Deren. A cineasta russa-americana  que por lá se embrenhou nas décadas de 1940 e 1950, buscou conhecer a música e a dança ligadas aos rituais de possessão do vodu, e transformar tudo em um cinema poético, experimental por excelência. Vemos também  Haiti: Dreams of Democracy  (1988), de Jonathan Demme, documentando a queda do ditador Duvalier. Demme foi mais um branco fascinado pela mitologia daquele estranho país.

Ao aglutinar estes elementos referenciais, Adriano nos permite entender  um pouco melhor o gesto corajoso do haitiano em frente ao Palácio da Alvorada,  através das lutas históricas didaticamente registradas   nos letreiros do filme: “A revolução haitiana (1791-1804) aboliu a escravatura e foi o primeiro país independente na América Latina e a primeira república governada por negros no mundo”.

A expressão “o que é isto?” da mulher indignada ganha maior relevo quando pensamos que no início de 2020, o presidente ostentava uma reprovação de apenas 39% da população. Aquela mulher, aqueles seres no cercadinho e fora dele também,  não podiam aceitar que um imigrante negro, vivendo “de favor” no Brasil, tivesse o topete de interpelar o “mito”. Claro, a curva de aprovação já estava em queda, mas ainda não sinalizava o encaminhamento para o genocídio que viria. “O que é isto?”, quer dizer “quem este imigrante pensa que é?”, “como ousa, como tem coragem?”

Ali, naquele momento, o haitiano não identificado era apenas um borderline para a turba ignara. Adriano resgata as intenções do homem, informando que ele teria tido a mãe morta em uma ação do Exército Brasileiro liderado pelo general Augusto Helena no Haiti.  Ele teria ido até Brasília para entregar uma carta ao militar.  E esse é o mote para o diretor trazer detalhes das operações, que tiveram na  “Minustah”, das Nações Unidas, a missão mais catastrófica de todas, com milhares de mortes de civis, na maioria mulheres e crianças. Com o objetivo de promover a pacificação do país, que vivia em guerra civil, a missão resultou  nos massacres no complexo de favelas da capital Porto Príncipe, a Cité Soleil, entre 2005 e 2006. A população haitiana  condenou a ocupação militar estrangeira, liderada pelo Exército Brasileiro, por meio de uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Carlos Adriano não poupa nos letreiros: “O fato levou a ONU a um ato inédito, que foi solicitar ao governo brasileiro (do então presidente Lula) a substituição dos comandantes das tropas no Haiti, os generais Augusto Heleno e José Elito Carvalho. Heleno, ocupa  o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo”. O fato de Augusto Heleno ter sido enviado para o Haiti no governo petista provoca um incômodo que Adriano não escamoteia, ampliando assim nossa visão da política, dos militares e de como viemos parar aqui.

São dados históricos jornalísticos, que podem ser encontrados facilmente na Internet. Adriano  não faz um trabalho de investigação para revelar fatos desconhecidos. O diretor, afinal, está circunscrito aos limites de um curta-metragem de compilação, de pouco mais de 15 minutos, nos quais ele se restringe à reunião de dados, por meio de uma montagem performática e uma trilha sugestiva. Ao fazer isto, e com o distanciamento que o tempo lhe concede, seu filme ressignifica o presente, deixando a sensação não só de que o Haiti pode ser  aqui, mas de que a história insiste em se repetir. Lá e aqui.

O episódio do haitiano no cercadinho viralizou,  mas  com tantos acontecimentos de maior impacto que o sucederam, deve ter se perdido no vulcão que se transformou o Brasil. O próprio haitiano destemido não foi mais encontrado. Ao recuperar a cena, Adriano nos leva ao Haiti  pelas imagens de arquivo e pelos letreiros que contextualizam essas imagens. De certa maneira, o personagem fica eternizado pela força do cinema, numa espécie de tributo ao soldado desconhecido.

A frase dita pelo haitiano para o presidente (“acabou, Bolsonaro, você não é presidente mais”), em princípio é a mais importante daquele episódio. Porém, com a recepção sempre subjetiva de cada espectador, nos chama mais a atenção a frase bumerangue da mulher. “O que é isto?” reverbera, ganha outros sentidos,  se multiplica, viaja no tempo, vem parar em frente ao Supremo, no 7 de setembro, na devastação da Amazônia, na  ascensão do fascismo.

O que há em ti é um filme que poderá ter difícil circulação, já que os direitos autorais de músicas e imagens ainda não foram resolvidos  e porque o diretor, cioso da precariedade de exibições piratas que estragam a fruição, não liberará o download facilmente. Sorte de quem o tem visto nos canais de transmissão dos festivais.

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