Noites Alienígenas (texto #3)
Um filme alienígena no circuito comercial, e é de filmes como ele que precisamos.
Por Humberto Silva | 17.03.2023 (sexta-feira)
Noites alienígenas está sendo divulgado como o primeiro longa-metragem de ficção feito no Acre que chega ao circuito comercial. Não ponho em dúvida que seja o primeiro, claro, mas tão só acentuo a estratégia que desperta curiosidade no potencial espectador: não é todo dia que se vê o Acre na bolha mass média.
Noites… foi exibido na 50ª edição do festival de Gramado, onde abocanhou os Kikitos de melhor longa-metragem, ator (Gabriel Knoxx), ator coadjuvante (Chico Diaz), atriz coadjuvante (Joana Gatis) e o troféu da crítica. Essa premiação no festival mais midiático do Brasil, claro, gera expectativa e atiçaria a curiosidade do espectador para ver a realidade – pouco presente no Brasil litorâneo – do chamado “Brasil profundo”.
Noites… foi dirigido pelo acreano Sergio de Carvalho, que em decorrência estreia na direção de longa-metragem. Certo, mas comecei aqui mencionando a curiosidade de um espectador externo ao “Brasil profundo”. Digamos que esse espectador não careça de imagens da floresta amazônica. Estas alimentam um imaginário exótico e exibem um mundo acentuado pela alteridade, pelo “diferente”.
Noites… de Sergio de Carvalho sai da floresta e mostra a cidade, Rio Branco. O que exibe, então, é um mundo facilmente reconhecido nos grandes centros urbanos além Rio Branco: o tráfico de drogas, jovens cantores de rap, a sexualidade precoce e licenciosa, a marginalização, a pobreza, as disputas entre gangs, a violência.
Noites…, contudo, não se restringe à exibição do quanto a cidade de Rio Branco espelha a realidade violenta e trágica dos grandes centros na costa litorânea do país. Sim, há momentos de fundo documental, em que ritos próprios dos povos da floresta são filmados. Como, por exemplo, assar peixes enrolados em folhas de bananeiras. De qualquer forma, o foco é a vida urbana e seus conflitos.
Noites… pode, com isso, ser assim resumido. Há três grupos de personagens que se articulam na trama. Um traficante que passou da meia idade, visionário, com fantasias sobre a existência de discos voadores, que vive isolado da rota do tráfico e estimula anseios artísticos de um jovem que faz grafite e compõe rap. O jovem (Gabriel Knoxx), que leva vida ociosa, sem emprego, vive com a mãe (Joana Gatis)– uma mãe solteira que curte a vida nos botecos da vida – e se relaciona com uma jovem (Gleice Damasceno) que tem um filho pequeno, fruto de relacionamento com outro jovem (Adanilo) de origem indígena mergulhado no mundo das drogas.
Noites… gira as situações de conflito em torno do jovem indígena que não consegue dar conta do vício. Ele contrai dívida com os traficantes a assim se coloca na linha de tiro. Esse, em linhas gerais, o fio condutor da trama. Uma trama na qual há um fio tênue separando quem está dentro e fora do mundo do crime. Ou, talvez, melhor: na qual não é possível separar essas duas esferas, que se entrelaçam com naturalidade no cotidiano dos personagens.
Noites… se insere, assim eu percebo, em certa tendência, digamos, intimista do ciclo de “filmes favela”. É uma tendência que não apela para o espetáculo da violência explícita – Cidade de Deus (2002) e Tropa de elite (2007) são modelos –, mas para dramas intimistas de quem vive no “mundo cão”. A esse respeito, se afina com A mãe, de Cristino Burlan, também premiado na 50ª edição de Gramado.
Noites…, como A mãe, é um filme que se aproxima do indivíduo, e assim cria personagens nos quais a violência é mais latente do que explícita. É um filme, pois, que instiga a discussão sobre as diversas bolhas que existem em um país no qual tudo parece tão separado quanto familiar: a realidade violenta de Rio Branco não difere da dos grandes centros urbanos na costa litorânea.
Noites… se beneficiou do apelo ao distante para um olhar que não está no Acre. Um lance de marketing no jogo do mercado: o que Noites… revela não é exatamente estranho e sim bastante familiar, numa paisagem diferente. Além do jogo de marketing a indagação é se Noites… cruza a estação. Ou, jogando com a metáfora do título, se é tão só um ovni que, alguns dizem ter visto, mas muitos sequer acreditam em ovnis.
– Leia também crítica de Luiz Joaquim e de Ivonete Pinto, para Noite alienígenas, por ocasião de sua exibição no 50º Festival de Gramado.
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