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Críticas

O Fascismo de Todos os Dias

O Fascismo de todos os dias é aqui e agora

Por Ivonete Pinto | 24.11.2021 (quarta-feira)

Um documentário de 1965 faz o espectador ser sacudido pela atualidade de seu tema.

Mesmo que O Fascismo de todos os dias (Obyknovennyy fashizm, Mikhail Romm, 1965) seja parcial, pois não aborda o fascismo stalinista, esta parcialidade  não desacredita seu conteúdo, construído através do resgate de arquivos do Ministério de Propaganda do III Reich. Quando o diretor, que é também o narrador, referindo-se à participação soviética na Segunda Guerra Mundial diz que “no destino de cada um de nós, soviéticos, ficaria uma cicatriz”, pode estar dando uma pista do contexto histórico de seu filme. Josef Stalin sempre tentou esconder a dimensão das perdas soviéticas, divulgando números em torno de 15 milhões de mortos, entre civis e militares. Quando Nikita Khruschov assume o Partido Comunista em 1953, torna público não só os crimes de Stalin, como redimensiona as perdas: foram de fato  20 milhões de mortos. É este o número que Mikhail Romm cita no filme, sob os auspícios da desestalinização da União Soviética promovida por Khruschov.

Outros filmes sobre o fascismo soviético, de gênese diferente da do nazismo, mas nem por isto menos aceitável, podem ser vistos. Por exemplo,  a série  Gulag, a história dos campos de concentração soviéticos, de Patrick Rotman, Nicolas Werth e François Aymé (2020), que traz imagens documentais, incluindo depoimentos de ex-prisioneiros dos campos de trabalhos forçados. State funeral, de Sergei Loznitsa (2019), da mesma forma é pertinente,  pois mostra o ponto de vista de um ucraniano sobre o culto a Stalin. Naturalmente, é possível refletir mesmo em um filme de ficção, como a produção baseada na vida do repórter Gareth Jones,  A Sombra de Stalin (2019), centrado no horror da fome induzida por Stalin na Ucrânia (o filme está disponível no #cinesescemcasa até dia 13/12, gratuito). Um aspecto a destacar neste que é dirigido pela polonesa Agnieszka Holland, é que os líderes mundiais não acreditavam que o nazismo iria dar no que deu. Não acreditar igualmente é um sintoma da nossa época, não?

Então, para quem imediatamente sentiu falta da abordagem dos horrores domésticos no filme de Mikhail Romm, há inúmeros títulos a compensar e esclarecer.

Lembrando que também cabe citar governos totalitários de outras paragens, como nos filmes de Rithy Panh, especialmente S21: a máquina de morte do Khmer Vermelho ( 2003), sobre o genocídio perpetrado por um regime pretensamente comunista. Na verdade, o cinema tem produzido uma quantidade de filmes incontornáveis para a nossa educação da história, o problema é que eles não passam na escola, ficam circulando só nas bolhas.

Por sinal, em O fascismo de todos os dias, também conhecido como O fascismo ordinário, dá-se razoável destaque para as crianças. Dividido em 15 capítulos, o filme abre e fecha com elas, ora ressaltando sua inocência, ora o quanto são fundamentais para a perpetuação de qualquer ideia.

Imagem de “O Fascismo de Todos os Dias”

Ter acesso a documentos e imagens do Ministério da Propaganda e do arquivo pessoal do próprio Führer, produzidas por soldados de dentro do covil da SS, não permite ao espectador relativizar os fatos. Muitos soldados carregavam em seus bolsos fotos dos filhos junto a outras de prisioneiros sendo enforcados, cabeças decepadas, valas cheias de cadáveres. Alguns  soldados faziam selfies ao lado das vítimas. Em outras imagens, vemos que as mulheres alemãs não podiam recusar os soldados. Casadas ou solteiras, não importava, elas deveriam procriar com genuínos representantes da raça ariana. Como era possível que as famílias permitissem algo assim? Romm ensaia uma resposta utilizando a máxima do próprio Führer de que é preciso explorar as emoções primárias das massas. Assim é possível conseguir qualquer coisa delas.

O documentário se apoia em um combo de situações que não são “narrativas”, são acontecimentos. Narrativa é o texto da magistral narração irônica de Mikhail Romm. Ele cobre as imagens nos dando a conhecer o grau de bestialidade do regime nazi-fascista, onde sobram diatribes contra Mussolini também.

Nada é exatamente novidade, mas ter as imagens e os dados reunidos, na perspectiva de duas décadas após a Segunda Guerra, é algo desconcertante. E temos que reconhecer, que ver este filme em qualquer época provoca arrepios, porém ver hoje no Brasil, em plena ocupação militar no governo, em plena adoção de políticas discriminatórias, em plena sujeição da razão ao culto a um messias  –  iria dizer “falso messias”, mas todos os messias são falsos –, nos interpela a agir. Ao menos, nos interpela a projetar um futuro em que outras gerações vão nos cobrar: e o que vocês fizeram?

Ver parte da população alemã em delírios na passagem do Führer; ver Goebbles exortando à guerra, quando ela já tinha sido perdida; pior, ver o Führer abençoando crianças que seguiriam  para o front… Como os alemães permitiram? E tudo teve um começo, um meio e um fim. Em todas as etapas, os donos do capital financiaram um partido que já demonstrava suas patologias no nascedouro. Paul von Hindenburg, militar que virou presidente,  “foi obrigado” a nomear chanceler aquele  sujeitinho  e a partir dali foi uma avalanche de adesões interesseiras.

A propósito, sobre este tema em especial, há um ótimo documentário disponível no Youtube, o grego Fascismo S/A (Aris Chatzistefanou, 2014), que aponta o papel das elites econômicas na configuração do fascismo na Europa desde a primeira metade do século passado.  A produção serve para mostrar as origens da crise política e econômica na Grécia e o que significa a ajuda do FMI aos países pobres. Impossível não estabelecer paralelos com o Brasil. Marcas como Hugo Bossa, Siemens, Thiesen, BMW, Bayer… todas têm vínculos com sistemas totalitaristas e cadáveres nas costas.

Quais serão as marcas que no futuro estarão associadas ao patrocínio do negacionismo na pandemia, à perseguição política, à destruição da Educação e à complacência com a destruição da Amazônia?

Neste documentário dos anos sessenta vemos hordas de políticos do “großes Zentrum” (ou algo que o valha ao centrão germânico) apenas negociando cargos. Nos primeiros tempos da instalação do III Reich e mesmo no decorrer dele, governos de diversos países, incluindo o Brasil, apoiaram, e até festejaram a ascensão nazi-fascista. E assim o ovo virou serpente e foi crescendo e engolindo parte da Europa. E assim foi possível criarem os campos de concentração  e matarem seis milhões de judeus e outros grupos indesejáveis. Está tudo no filme, com imagens – repito – geradas pelos próprios infames. Estão no filme também as razões que levaram a Rússia a  mandar seus soldados viajarem milhares de quilômetros para combater a expansão do nazismo: nos planos maquiavélicos do Führer et caterva, estava a invasão da própria União Soviética.

O fascismo e todo os dias deveria ser passado em sala de aula. Não vai passar porque o ovo já virou serpente e há manadas de seguidores do messias tupiniquim dispostos a identificar mensagens comunistas em portas de banheiros. Prontas a denunciar qualquer tentativa de racionalidade chamando-a de “comunismo”. Engraçado que não são capazes de chamar de fascismo. Isto porque são ignorantes dotadas de má-fé, pois creem que são superiores. De uma estupidez e de uma má-fé que vêm de berço e que a escola não está conseguindo impedir. Não faltam avozinhas de verde e amarelo gritando em favor da ditadura: deviam ter matado todos! Como podem? O combate à corrupção sendo a alavanca; a ideia de serem guiados por Deus, sendo o devaneio.

O vídeo que circula nas redes por aqui, com crianças uniformizadas cantando “eu sou homem, criado por Deus; eu sou mulher, criada por Deus… Obedeço minhas autoridades…” não é nacionalismo ou expressão religiosa. É fascismo, e será incorporado em um documentário no estilo deste russo em algum momento no futuro. Será a prova cabal do plano que começa pelas crianças.  As famílias e as escolas de bem ditando o totalitarismo dos costumes e das crenças. O horror, o horror.

O documentário O fascismo de todos os fias  ficou disponível pela CPC-Umes Filmes. Se ainda não assistiu, fique atento porque ele pode ressurgir em alguma curva qualquer da internet. Vale a pena ser visto, antes que a perplexidade nos trave e nos torne apáticos para o mal. Claro está que não somos os únicos  a sofrer deste mal. Vasos comunicantes existem no corpo do mundo todo e cada um de nós precisa fazer sua parte.

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