X

0 Comentários

Críticas

Ataque dos Cães

Aquilo que se quebra, ainda que encoberto pela grossa carapaça da ignorância masculina.

Por Luiz Joaquim | 04.12.2021 (sábado)

O cinema de Jane Campion é feito – entre tantos elementos ricos – com colossais paisagens, de modo a contrastar a beleza e a grandiloquência da natureza com o que há de pequeno na dimensão física humana; e também de pequenos gestos físicos, destes humanos, para realçar o gigantismo de sua beleza, ou complexidade, se assim o leitor preferir.

Basta acessar qualquer obra de sua filmografia para conferir a assertiva acima. Em Ataque de cães (The Power of the Dog, NZL, EUA, GB, Aus., Can., 2021) – disponível na Netflix desde a quarta-feira (1º dez.) –, a cineasta neozelandesa capricha no primeiro elemento citado acima, sem esquecer do segundo, claro.

O que há de distinto aqui está, ao contrário dos filmes anteriores, no elemento humano ganhando espaço logo de início, antes do cenográfico, quando temos em Ataque de cães a força do panorama em hiper destaque, de cara, na primeira das seis partes do filme.

Mas é interessante observar como Campion e sua diretora de fotografia, Ari Wegner, não tornam esse artifício de abrir a lente para a vastidão das terras de Montana, no oeste do EUA em 1925 (na verdade, as terras de Aotearoa, na Nova Zelândia, a real locação do filme), em algo presunçoso ou forçadamente suntuoso, apenas para chamar a atenção para si próprio.

Acontece que, além de apresentar a óbvia beleza e a força daquela natureza, a organização das imagens parece ter uma função narrativa muito bem definida: situar rapidamente o espectador num ambiente no qual os personagens são realmente pequenos e solitários em seus isolamentos. Seja geográfico. Seja humano.

Não à toa, Phil (Benedict Cumberbatch, em performance merecidamente elogiada), a certa altura, explicita ao jovem Peter (Kodi Smith-McPhee): “Este é um lugar de solidão, a menos que você pegue o jeito”.

Kirsten Dunst é mais uma solitária, na pele de Rose

Noutro momento, o irmão de Phil, George (Jesse Plemons, de Estou pensando em acabar com tudo), numa das diversas cenas tocantes criadas por Campion, vira-se para a recém-esposa Rose (Kirsten Dunst, também impecável) e, contendo o choro, revela: “Eu queria dizer como é bom não estar sozinho”. Cercando o feliz casal, está lá um infinito e verde vale montanhoso. Que quadro!

A trama de Ataque de cães tem início na trajetória dos irmãos fazendeiros Phil e George, e a tensão inicia quando, tocando o gado numa viagem, eles param com os boiadeiros na estalagem de Rose. Rose é mãe viúva do jovem Peter. Este, antes de iniciar os estudos em medicina, a ajuda no seu estabelecimento num fim-de-mundo.

Acontece que George tem um nobre interesse por Rose, enquanto que Phil guarda um rancor aparentemente indefinido pela mulher. Mais do que isso, um desprezo. O filme de Campion, adaptado por ela a partir do livro homônimo de Thomas Savage, põe essa hostilidade de Phil na conta de uma característica de sua personalidade como um todo.

Cumberbatch(e) e Plemons como Phil e George em “Ataque de Cães”

Enquanto Cumberbatch faz de seu Phil o vaqueiro bronco (mas não tosco), que nem gosta de tomar banho, e é másculo no sentido mais bruto que o termo possa guardar, temos em seu irmão George a figura masculina oposta, representando o que há de civilizado na masculinidade, sendo um cavalheiro e devoto marido à amada esposa.

Talvez essa dualidade do masculino, em dois personagens tão distintos, tenha sido um dos aspectos que atraiu Campion a esse delicadíssimo projeto (que lhe deu o leão de prata de melhor direção em Veneza), mudando o seu habitual foco, sendo ela uma conhecida e celebrada cineasta que sempre trabalhou o protagonismo feminino nas obras anteriores.

O protagonismo aqui em Phil repousa sobre questões muito caras à sociedade de todas as épocas. Seja em 1925 ou em 2025. Em 2021, não precisa pensar muito para entender a complexidade e sofrimento desse animal ferido chamado Phil se juntamos as peças de seu desprezo pelas mulheres (ainda que as use como objeto sexual) mais a sua violenta homofobia (perdoem a redundância).

A chave fundamental aqui para irmos percebendo o conflito interno desse vaqueiro que construiu toda uma vida em torno da imagem da masculinidade bruta e que, por essa autoimposição, torna-se vitima de sua própria ignorância, está na figura de Peter.

Peter é franzino, delicado nos modos e no cuidado com a mãe. Atento à natureza, traz uma fragilidade do corpo que não aparece em sua personalidade. Ainda que seja percebido como afeminado pelos vaqueiros da fazenda dos irmãos Phil e George, não se deixa intimidar. Numa sequência antológica, que melhor ilustra tudo isso, ele caminha plácido pelos boiadeiros, entre assobios maldosos e xingamentos, apenas para chegar próximo a uma árvore e contemplar pássaros num ninho. E o faz com altivez.

Smith-McPhee vive Peter

Mas, sem dúvida, do ponto de vista das performances, Cumberbatch parece ter alcançado seu ápice aqui. Não é para menos. Phil é um presente para qualquer ator que pleiteie desafios. E Cumberbatch soube enfrenta-lo com maestria.

Diz-se, inclusive, que na preparação para viver o malcheiroso Phil, o ator chegou a ficar quase duas semanas sem tomar banho. Essas curiosidades, entretanto, não traduzem o que ator traz para a tela.

Cumberbatch empresta ao seu Phil uma expressão assustadoramente dúbia, própria dos animais perdidos, inicialmente remetendo ao macho autossuficiente. Sua postura corporal, a fala carregada no sotaque e compassada, seja na fúria ou na tranquilidade, e os gestos econômicos fazem de seu Phil uma figura misteriosa, quase insondável, própria dos grandes personagens de qualquer literatura.

Que venha o seu primeiro Oscar (e o de Kirsten Dunst também).

PS. – Uma cena: O pavor e paralisia de Rose ao tentar se apresentar, ao piano, para o governador em Ataque de Cães merece analogia com o pavor e a paralisia de Janet Frame em tentar escrever no quadro negro enquanto dá aula para uma turma de garotas em Um anjo em minha mesa.

 

Mais Recentes

Publicidade