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Clássicos

Um anjo em minha mesa

A jornada de um bichinho assustado que sentia a vida em todo o seu esplendor e a traduzia em poesia

Por Luiz Joaquim | 01.12.2019 (domingo)

– texto escrito em 13 de julho de 2010, para o livro Os filmes que sonhamos, V. 1 (2011), organizado por Frederico Machado .

É realmente raro encontrar um projeto cinematográfico que se travista técnica e tematicamente modesto sendo, na verdade, em suas minúcias, bastante sofisticado. O inverso é comum pois, cada vez mais, se escuta falar de “revolucionários” trabalhos cinematográficas cuja única revolução alcançada é a do espectador, rodando inquieto na poltrona com a bobagem diante de si.

Um anjo em minha mesa (An angel at my table, NZel., Aus., Ing.,1990), de Jane Campion, está na primeira categoria. Não há nada de modesto neste trabalho que lançou tanto a atriz protagonista Kerry Fox ao mundo, quanto sua diretora a partir do Festival de Veneza daquele ano; pelo qual Campion arrebatou o Prêmio Especial do Júri e outros três troféus.

Mas sim, o filme parece modesto pela maneira, podemos dizer, sussurrante, com a qual Campion conduz esta cinebiografia da escritora neozelandesa Janet Frame (1924-2004) – dividida por três fases de sua vida: a infância (vivida pela linda Karen Fergusson), adolescência (Alexia Keosh) e adulta (Fox).

O primeiro acerto de Campion está em sintonizar na mesma freqüência a cadência e volume de seu filme com a do modo de enxergar o mundo de sua protagonista. Frame é o terceiro rebento de cinco filhos de um casal pobre numa ilha do sudeste neozelandês, que já vivia acuada desde a infância – como mostra o filme – pela sua aparência distinta e especial interesse em manter-se afastada, apenas na companhia da literatura.

Gordinha, e com seu cabelo ruivo que lhe rende o apelido de ‘fofinha’, Frame pega dinheiro escondido do pai para comprar bombom e distribuir na aula e daí, talvez, ganhar a simpatia de alguma coleguinha.  Desde cedo sua aptidão para a escrita é aguçada, e Campion nos dá como exemplo a sua teimosia, diante da irmã mais velha, quando mantém uma ideia original, e mais lúdica, para uma primeira estrofe duma composição poética colegial.

Do ponto de vista dramático, nas cinebiografias que correm a vida inteira de um personagem real, o habitual é perceber um desequilíbrio na representação da tensão nas diversas fases desenhadas daquela vida. Em Um anjo em minha mesa o que impressiona é o oposto. É a precisa equalização com que Campion dosou as constantes pauladas tomadas pela sua personagem. Sendo, talvez, a mais dura, aqueles oito anos em que passou, na entrada para a vida adulta, internada num sanatório, quando tomou 200 choques elétricos para curar um equivocado diagnostico de esquizofrenia.

Vítima da ignorância de um professor que admirava, Frame foi parar no hospital exatamente pelo seu comportamento extremamente tímido. Há uma sequência específica, econômica e elegante, criada por Campion e abençoada pelo talento de Fox, que dá a dimensão desse extremo desconforto de Frame com o outro, com o que lhe é desconhecido.

Na sequência, Frame está lecionando a crianças e tem a aula interrompida por um inspetor que vai averiguar seu profissionalismo. A estratégia cinematográfica de Campion para mostrar como a situação desestabiliza a personagem é simples e correta. Enquanto o inspetor, sentando ao fundo da sala, espera que Frame siga a lição, ela, virado para o quadro negro, observa um pedaço de giz. Não interessa o que nos espectadores enxergamos naquele pedaço de giz, mas entendemos pela expressão em close da atriz que, o que ela vê, é o horror da opressão, enquanto nós a seguimos sob o som de uma ópera lírica devastadora.

Deve-se aqui levar em conta, no quesito técnico, o extremo apuro do fotógrafo Stuart Dryburgh, que mais tarde, em 1993, fotografou O Piano também para Campion – filme que deu à diretora a Palma de Ouro (até hoje a única mulher a recebê-la), além dos Oscars de roteiro, atriz e atriz coadjuvante.

Ora utilizando filtros para emoldurar o infinito horizonte da paisagem neozelandesa, ora abusando do contraste e da contraluz para dourar a figura quase imaculada e indefesa que era de Janet Frame, Dryburgh nos oferece tanto a beleza visual de uma pintura holandesa seiscentista – com Frame no seu quarto em Ibiza – quanto a potência do encantamento contido numa Venus de Botticelli – quando a poeta nada nua nas água claras da Mar Mediterrâneo.

Sobre este momento na estrutura narrativa de Um anjo em minha mesa, também é clara a transformação pela qual passa a personagem. Há uma coerência nessa beleza plasticamente composta por Dryburgh, pois ela associa-se, praticamente, a uma transformação na qual Frame experimenta pela primeira vez na vida ao encontrar um par. Ela aqui vai usufruir de um outro prazer além do único que conhecia na literatura. O prazer que seu corpo pode proporcionar.

Mas o que parecia uma promessa de mudança em sua relação com o mundo, acaba virando de ponta-cabeça ao perceber que mesmo num par, há diferenças na intensidade pela forma como ela enxergava a poesia e a própria vida. A certa altura do rápido romance de Frame com um professor de história norte-americano em Ibiza, Campion explicita isso na cama com aquele que, pela construção do enredo, é o primeiro homem da escritora.

A cena enquadra os dois, e, durante as primeiras carícias, seu namorado interrompe a ação para lhe falar de um poema que escreveu naquela manhã. O corte do namorado é estúpido e grosseiro. Essa sensação nos é amplificada quando a câmera que, era imóvel nas carícias, começa a sofrer a ação de um zoom em direção ao rosto confuso de Janet Frame. É um zoom lento, mas suficiente para aproximar o espectador do sentimento de decepção que se apodera da escritora.

Ao mesmo tempo, a figura masculina vai sendo deixada de lado no enquadramento, junto com a importância que ele tinha para a cena. Este “deixar de lado” a figura masculina é também de uma importância singular na obra de Campion. Ela é, senão a mais afiada, uma das melhores autoras cinematográficas a traduzir com correção o espírito feminino. Além de O Piano, em 2010 outro atordoante filme resgatou esse seu espírito, estreando nos cinemas brasileiros com o título de Brilho de uma paixão (Bright Star), cujo foco nem é o poeta inglês John Keats (1795-1821), mas a garota Abbie Cornish, seu único amor de sua curta vida.

De forma mais pontual em Um anjo em minha mesa, o homem está em segundo plano. Mas a opção cinematográfica como isto é posto não é ofensiva nem hostil, mas apenas definida pelo pouco espaço que eles detêm em cena. Mesmo numa cena intermediária, essa verdade é dada, como, por exemplo, na sequência em que Frame aparece trabalhando como garçonete num restaurante.

À medida que ela conversa com sua irmã sobre a opção por esse emprega ao de professora, a grande representação feminina nesse momento não repousa na personagem de Frame, e sim no da sua irmã. Durante toda a conversa, seu namorado fica acariciando seu braço, rosto e cabelo. Diante de uma conversa importante, o personagem masculino não emite nenhuma palavra, muito menos opinião.

Nos parece que há, aqui, não uma intenção depreciativa sobre o masculino, mas sim uma feminilidade cômica e inocentemente irônica, diga-se de passagem, mostrando o homem como um bobo, interessado apenas em carícia, mesmo num instante sério.

Talvez a figura paterna de Janet Frame (além da de seu irmão mais velho, pouco desenvolvida aqui) seja a única preservada como séria do ponto de vista masculino.  Mesmo em toda a aspereza da vida simples no ambiente em que cresceu, Campion põe o pai de Frame como um núcleo forte e imponente cercado por uma amorosa família com cinco mulheres.

E este é um elo inquebrável que a diretora amarra da infância a fase adulta da protagonista, quando já era uma escritora respeitada em Londres e volta à Nova Zelândia para o funeral do pai. Se no primeiro momento, quando seu pai presenteia a fofinha Janet com um caderno para ela depositar ali suas primeiras poesias, temos o enquadramento altivo do pai, de costas para o espectador, mas orgulhoso e de frente para a filha querida, na vida adulta temos a escritora experimentando as botas gastas do falecido pai, e brincando de imitar seus trejeitos rudes. Não há palavra dita aqui, apenas a luz de Dryburgh banhando corpo de Kerry Fox, que gesticula feliz como que possuída pelo espírito de seu pai.

Na verdade, a família é este elo. E mais uma vez, numa sequência simples e linda, Campion mostra o quanto aquele alicerce era firme pela postura da fofinha Janet ao oferecer o que de melhor ela podia dar a quem ama: livros. Depois que recebe o benefício do livre acesso a uma biblioteca, ela volta para casa carregada de livros, mas não para si e sim para cada membro da família.

É o início da jornada de um bichinho assustado que sentia a vida em todo o seu esplendor e a traduzia em poesia, muito embora não suportasse o mundo em que vivia, nem as pessoas que nele viviam. É como uma Macabéia, de Clarisse Lispector, para quem o mundo e os homens eram brutos demais contra tanta delicadeza.

 

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