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Críticas

Yalda: Uma Noite de Perdão 

Sensacionalismo e perdão

Por Ivonete Pinto | 08.12.2021 (quarta-feira)

Yalda – Uma Noite de Perdão  (Yalda, 2019) é um desses filmes iranianos que surpreende os  cinéfilos, especialmente seus detratores. Tem criança, mas não no papel habitual de emissor de metáforas; no lugar do ambiente rural temos uma metrópole agitada. O plano de abertura faz um passeio “dronístico” noturno em uma Teerã pouco vista, de avenidas abarrotadas de carros, pulsando no ritmo das grandes cidades do mundo. A câmera vai parar na porta de um moderno edifício de uma emissora de TV, onde a protagonista é desembarcada de uma viatura policial. É Maryam (Sadaf Asgari), uma jovem que está presa e irá participar de um programa de auditório. Ela matou o marido – segundo a própria, acidentalmente – e o programa teria o objetivo de buscar o perdão da familiar mais próxima da vítima, sua filha Mona (Behnaz Jafari), e assim escapar da pena de morte a que foi sentenciada pelo crime.

Dirigido por Massoud Bakhshi, Yalda traz uma montagem ágil,  uma tensão permanente,  reviravoltas, muitos personagens secundários relevantes e um drama turbinado pelo sensacionalismo típico destes programas de televisão que abundam pelo mundo ocidental. O apresentador é um pulha maniqueísta que veste calça apertada, e o produtor  topa fazer tudo pela audiência.

Mas como qualquer filme iraniano que se preza, a verdade não está na primeira camada. Talvez nem na segunda ou na terceira…Nunca saberemos se a versão de  Maryam  para os fatos são totalmente confiáveis, se seu choro é real ou faz parte de um jogo para livrar-se da condenação. E esta é a proposta dialética para termos bons motivos na defesa do filme.

A cada elemento que aparece, o espectador vai ficando, em princípio, mais ao lado da protagonista: o marido, publicitário rico, passava dos sessenta anos quando casou com Maryam; ela trabalhava como secretária dele,  perdeu o pai quando criança, é pobre e estava grávida quando o crime aconteceu. Para não dar spoiler, não vamos falar desta gravidez.

Sadaf Asgari é Maryam em “Yalda”

Convém apenas aprofundar o elemento da remissão,  que está presente no filme desde seu título. Yalda diz respeito ao solstício de inverno iraniano. Se passa todo em uma noite, nesta que é a noite mais longa do ano. Pode parecer gratuito, mas a entrada da atriz famosa no estúdio de TV, em meio ao drama de Maryam, é bem didático: a atriz é convidada para ler um poema de Hafez, em que há referência à noite mais longa do ano, e tem relação ancestral com o zoroastrismo (religião praticada antes da invasão árabe, portanto antes da Pérsia se tornar muçulmana) e até com os valores cultuados pelo cristianismo no  Natal. É uma celebração da amizade, do estar junto aos amigos para comer e ler poesia. Ironia total pois a situação não tem nada de amigável ou celebratória, já que a jovem Maryam foi condenada à morte. O programa ter escolhido esta data para a personagem pedir o perdão de Mona tem um significado coerente. As duas, por sinal, eram supostamente amigas antes do crime.

No Irã  governado pela Sharia, conjunto de leis baseado no Corão, o perdão é uma instituição, faz parte do sistema judiciário. Pressupõe que a família da vítima receba uma compensação pecuniária pela perda, valor imposto que pode atingir um montante impagável pela família do criminoso. Assim, no filme, e dependendo do número de votos do público, o patrocinador do programa iria pagar esta indenização. A decisão de Mona não é regida  pelo dinheiro, já que ela é rica e está disposta a não perdoar. Porém, lá em outra camada, vemos que ela precisa do dinheiro.

A motivação para a indulgência deveria ter caráter religioso, visto que é uma atitude central compartilhada  pelas três grandes religiões fundadas por Abraão. No Irã de maioria xiita, o perdão está vinculado a esta compensação e muita gente mofa na prisão ou é executada por falta de recursos. O Irã moderno criou este espetáculo midiático explorando questões enraizadas na sociedade. Embora estejamos falando de uma ficção, o enredo de Yalda é inspirado em um programa muito popular que foi ao ar há alguns anos durante o Ramadã (o mês sagrado islâmico) e teve por objetivo reunir doações para ajudar a pagar a dívida de prisioneiros para com os familiares das vítimas. A audiência de 30 milhões de espectadores, pressupõe-se, pretende ser alcançada para as bilheterias  e por isto o filme também mira o mercado doméstico.

Mas nem só por isto. Na linha dos filmes de Asghar Farhadi, Yalda parte de um drama familiar para falar do entorno, sempre apinhado de labirintos burocráticos que os personagens precisam enfrentar. Um microcosmo que espelha um macrocosmo. Da mesma forma que em A separação (2011), O apartamento (2016) e Um herói (2021), filmes do oscarizado Farhadi,  não há referência direta ao regime. Não representa uma afronta aos valores da sociedade/ governo, como os filmes de Jafar Panahi, sempre censurados.

A crítica mais contundente que Yalda traz está mais ligada à velha luta de classes, de talho universal. E está num  detalhe pouco explorado, mas que sequer é criação deste regime teocrático, que é o casamento temporário. Instituição islâmica consagrada por lá desde antes da monarquia dos Pahlevi, consiste na possibilidade de um casal contrair um matrimônio legítimo, porém de mentirinha.

Na dinâmica social persa extensível ao mundo muçulmano, o casamento temporário (mutʿah, em árabe, sigheh, em farsi), é possível porque, de novo, existe o mecanismo da compensação, pois implica que o pretendente pague à esposa temporária uma quantia X, ou dê um presente daqueles que valham a pena. A mutʿah está no Corão e diz respeito a certas necessidades que envolvem as guerras, que deixavam muitas viúvas desamparadas (assim como o direito do homem poder ter quatro esposas, que tem origem em Maomé).

Ou seja, trata-se de um pragmatismo relativo a esta prática. Por exemplo, se um casal de namorados quer viajar junto, pode ser uma prática aceitável pelas famílias, mas tem que ser uma família não conservadora, porque a mulher fica marcada e dificilmente consegue um marido se não der certo o temporário. Afinal, ela não será mais virgem. E o componente da exploração sexual não deve ser descartado no caso de Maryam. A sociedade entende que é uma prática legal, porém não muito moral, por isto Yalda carrega uma complexidade que circunda várias camadas.

Ao que tudo indica, o marido queria apenas um relacionamento sexual com uma mulher jovem (a esposa está longe tratando de uma doença) e a mãe de Maryam viu ali uma oportunidade de melhorar de vida (a mãe é quem engendra toda uma situação a ter um  desdobramento melodramático ao final).

Vale também acrescentarmos algumas palavras sobre o cenário de tudo isto. A  TV iraniana é 100% controlada pelo Estado, através de emissoras segmentadas pertencentes à rede  Islamic Republic of Iran Broadcasting. A programação tem nos filmes  uma especial atração, reproduzindo o mesmo fenômeno da Índia, onde o cinema é ainda o grande foco de entretenimento.

Cena de “Yalda”

 

Mas a TV do Irã está mudando de uns dez anos para cá. Mesmo que o grosso da programação seja de filmes, de esporte e de debates religiosos, sem sair uma linha do que o governo permite, há telejornais  e programas de culinária apresentados por mulheres, devidamente paramentadas de shador.  A modernidade que entra aos poucos pelos lares, recebe também o lixo de programas de auditório copiados do exterior, com todo tipo de apelo. No filme, o programa chamado “Alegria do Perdão”  busca audiência  promovendo o encontro das famílias, tal qual por aqui vemos programas que exploram adultérios, brigas de vizinhos, etc.

Coprodução com vários países, entre elas a França, Yalda ganhou o Prêmio de Melhor Filme Dramático em Sundance, e é conduzido por  Massoud Bakhshi em seu segundo longa como diretor e roteirista, e segue as pegadas mais de Farhadi do que de Kiarostami, Makhmalbaf ou Panahi, entretanto garante a qualidade de seu elenco convidando atores consagrados. A atriz que faz Mona, Behnaz Jafari, trabalhou em 3 Faces (2019), de Panahi (é ela quem viaja no carro com diretor). Babak Karimi, que faz o produtor do programa, pode ser visto em Crime culposo (2021), exibido no 10º Olhar de Cinema. O ator se divide entre Itália e Irã (é responsável pela dublagem de filmes iranianos em italiano) e em 2011 foi chamado por  Asghar Farhadi para fazer o juiz em A separação. Interpretação que lhe valeu a vitória do Urso de Prata de Melhor Ator, em conjunto com o elenco masculino do filme  no Festival de Cinema de Berlim 2011.

Sadaf Asgari, que faz a protagonista, está no início da carreira, no entanto segura bem nas expressões a complexidade de emoções da personagem. Aliás, elencos iranianos, em geral, são forte motivo para nos levarem ao cinema, mesmo em tempos de pandemia.

Yalda – Uma Noite de Perdão   estreia nas salas de cinema amanhã (9)

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