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Digital

Colo

O desamparo da velha Europa

Por Ivonete Pinto | 18.05.2022 (quarta-feira)

Um dos primeiros planos de Colo (Teresa Villaverde, Portugal/França, 2017)  é bem ilustrativo do que veremos a seguir: uma adolescente, chorando, caminha desorientada em uma paisagem de floresta, pictórica. Como um alerta, a cidade surge ao fundo, coberta por nuvens escuras.

A fotografia do filme, com sua decupagem e movimentação de câmara, impulsiona  e se sobressai na narrativa. Há muitos subtextos nesta trama que são melhor compreendidos justamente pela imagem que não depende de diálogos. Empenho que a música, um tanto gratuita e melosa, não alcança.

O enredo é simples: em um Portugal que tenta se recuperar de uma  aguda crise financeira, um casal tenta administrar a bancarrota; ele está desempregado, a esposa trabalha dobrado para manter um padrão mínimo de  consumo, a filha adolescente perde o prumo. Soa banal, especialmente  na perspectiva de brasileiros experts em crises, mas o que a diretora e roteirista propõe é justamente iluminar as circunstâncias em que se instalam as tragédias familiares num país que até então vivia bem. O agravante fica por conta dos papéis sociais, pois numa sociedade em que o peso do sustento da família historicamente é dado ao homem, é humilhante para o marido não ter dinheiro e no lugar disto ter que se ocupar com os afazeres da casa. A distorção se instala mais em função deste incômodo de um poder patriarcal arranhado do que pela crise social em si.

Como diretora, Teresa Villaverde flerta com a plateia (de mulheres, ao menos), ao mostrar a “vingança da banheira”:  no lugar da mulher nua, na clássica cena clichê da banheira, temos um homem nu quem assume o posto. Mas diferente da gratuidade com que acontece este tipo de situação nos filmes, aqui há um gesto  ̶  o homem coloca um balde na cabeça, como que a fugir dos problemas ─ que contribui para a construção do personagem e  reafirma sua vontade de fuga.

Still de “Colo”

Quanto  ao motivo condutor em si , Colo nos remete claramente a Trabalhar cansa (2011),  de Juliana Rojas e Marco Dutra, no qual um drama similar acontece, com a diferença de que na produção brasileira  infiltra-se  o filme de gênero (o horror) para ilustrar  o impacto da crise econômica na classe média.

Note-se que nos dois filmes as mães de família são mulheres positivas, que enfrentam a instabilidade da melhor forma possível, cabendo aos homens o sofrimento, a humilhação, o sentimento de impotência.

De todo modo, à medida que Colo se desenvolve, os personagens vão se desequilibrando mais, como na cena em que o pai desempregado (personagem, assim como a mãe, que não tem nome, portanto, é apenas um pai de família desempregado) sequestra um antigo colega de escola e faz com que este o leve à praia. O que seria um impulso vai desencadear em mais perturbação.

Na balança dos desorientados, a mãe é a única que permanece forte, que não desiste e, mais do que isto, consegue colocar em prática um plano de salvação. A diretora erige assim uma tese, não distante da realidade, diga-se, de que homens são mais frágeis no enfrentamento das dificuldades econômicas e agem quase como crianças. Mulheres se adaptam. Na falta de luz, usam velas. Ao mesmo tempo, Teresa Villaverde tem um olhar terno para com este homem; não o julga, apenas mostra seu comportamento  como extensão da fragilidade dos homens modernos.

Nos chama atenção ainda que em Colo, há  reiteradas cenas com pessoas deitando e se cobrindo, numa insistência à necessidade de proteção e abrigo que remete ao título. No simbolismo proposto, fica clara a ideia de uma Europa que há pouco mais de dez anos passa por turbulências, em especial Portugal. Mais uma vez,  na ótica de países que convivem com a pobreza desde sempre, este sofrimento nos parece demasiado. Sim, perdem os empregos, perdem as casas, entretanto, numa leitura imanente, ficando apenas nas informações da direção de arte, vemos que os portugueses recém entram neste mundo. Seus tênis tinindo de novos, suas alianças de ouro e sua forma pouco econômica de cortar cenouras,  nos dizem que perderão mais coisas. Por falta de experiência, estão já no limite de perder a dignidade, como atesta a cena do arremedo de sequestro. Há que se considerar a própria inexperiência da jovem diretora. Embora já tenha no currículo outros três longas  ̶  Idade maior, (1991), Três irmãos (1994) e Os Mutantes (1998) – é visível uma certa falta de domínio  do conjunto, compensada, porém, por soluções seguras da fotografia (que podem ter surgido do roteiro, que é dela). A imagem final é expressiva, poderosa em sua simbologia. Ao afastar-se em zoom da cabana do pescador, o filme nos diz que é preciso distanciamento para projetar o que irá acontecer com estes personagens, com este país e com este velho continente. Continente este que não vive as dificuldades de uma guerra e que já entra em desatino quando a pobreza bate à porta.

Para ver o trailer de Colo, clique aqui

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