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Digital

A Vida Invisível (2013)

Espectro de uma vida que não existe senão ensimesmada.

Por Yuri Lins | 06.07.2022 (quarta-feira)

Poucas filmografias são tão misteriosas no cinema português quanto a de Vítor Gonçalves, justamente porque ele, diferentemente de seus companheiros de geração – Pedro Costa, Joaquim Pinto, entre outros – permaneceu com apenas dois filmes realizados com um hiato de 27 anos. O primeiro, Uma rapariga no verão (1986), pequeno filme feito de forma quase totalmente independente, acompanha os dilemas da vida da adolescente Isabel nos derradeiros momentos do verão. O filme passou por festivais como Berlim e Roterdã, mas só chegou a ter lançamento comercial em 2014. Já A vida invisível (2013)  teve passagem pelo Festival de Roma, Roterdã e Mostra de São Paulo, entre outros, e agora está disponível no MUBI (clique aqui), o que facilita o seu conhecimento por parte do público brasileiro.

É interessante perceber como o MUBI, um dos tantos serviços de streaming disponíveis no mercado brasileiro e, diferentemente de outros, ainda permite ao espectador certa surpresa com a descoberta de uma obra pouco vista, quase secreta, mas que carrega muita força. Grande parte deste poder advém de uma curadoria atenta e sensível para as produções que não estão necessariamente no olho de interesse do mercado, mesmo aquele que é dedicado ao cinema de autor.

Em A vida invisível narra-se o cotidiano de Hugo (Filipe Duarte), um funcionário público que passa grande parte de sua vida dentro de seu local de trabalho, o Palácio do Terreiro do Paço, em Lisboa, lugar que outrora fora a sede do governo português, mas que agora está em processo de dissolução. Quando António (João Perry), seu chefe, vem a morrer, Hugo encontra um conjunto de filmes em 8mm que António fez de viagens distantes e paisagens amplas. O processo de desmembramento do Palácio, a morte de António e a chegada de Adriana (Maria João Pinho), um antigo amor do passado que regressa a Lisboa, põe em cheque a reclusão que Hugo estabeleceu para a sua vida.

Filme de mise-en-scène simples e ritmo lento, sua forma aposta num regime de decupagem sem firulas. Sua fotografia (assinada por Leonardo Simões, colaborador constante do realizador Pedro Costa), imprime o lado soturno e escuro inerente aos espaços fechados do Palácio, algo que constrói o universo afundado em sombras que são próprias da interioridade das personagens. Os tipos que habitam A vida invisível são aqueles para quem o trabalho burocrático permite a clausura e a proteção para as suas personalidades solitárias.  Hugo é alguém que está afundado em plena melancolia. Um notívago que passa as noites deambulando por corredores escuros e salas vazias, uma presença espectral cujas poucas interações que mantém com outras pessoas refletem a sua incapacidade em se desvencilhar da prisão auto imposta de seu ser.

Pôster de “A Vida Invisível” (2013)

Com seu chefe António, alguém que, como ele, também vivia sozinho, sem família ou laços, Hugo possui um tipo de relação fraternal involuntária: ele sempre buscava a companhia de António para tratar sobre memorandos e relatórios, mas que, no fundo, são formas de manter uma convivência com alguém. António, por sua vez, antes de sua morte, deixa o contato de Hugo para caso algo lhe aconteça no hospital, além das incumbências referentes à casa em que vivia, e ao restante dos bens – dos quais Hugo interage com os filmes em 8mm. Estes 8mm feitos por António são imagens que apontam para um tipo de vida distante daquela que ele dedicou em sua velhice, no cotidiano moroso do funcionalismo público.  Paisagens iluminadas e de ares abertos, elas contrastam com o escuro e o ar pesado dos escritórios do Palácio do Terreiro do Paço. Diante destas imagens, Hugo indaga-se sobre tudo o que ficou por dizer entre ele e António.

Há uma cena que melhor sintetiza este tipo de vida vivida na inviabilidade: António está em seu quarto preparando a mala de roupas que levará para o hospital. A sequência é filmada à meia luz e com o ritmo lento dos gestos do personagem, dando o tempo necessário para que cada peça seja dobrada e guardada dentro da valise. Sente-se, com muita precisão, o temor de António com a cirurgia que está prestes a acontecer.  Noutra sequência, António está sentado à sombra num quintal. Seu olhar começa a percorrer o farfalhar das folhagens na copa das árvores e as variações de luz incidem no ambiente. Numa montagem simples, temos ali um indivíduo que observa o mundo ao seu redor com olhos de adeus, tornando cada detalhe deste mundo como algo precioso e de natureza rara.

Com Sandro (Pedro Lamares), outro funcionário, Hugo possui uma relação de antagonismo, uma vez que a presença de seu colega, sempre cínica e inconveniente, aparece para evidenciar que toda aquela estrutura do qual Hugo depende está sendo desmontada. O espectador não vê, porém há um processo de desmonte da repartição, que é desativada andar por andar, num ritmo que não tardará a alcançar o departamento em que Hugo trabalha.  Sandro é como um agouro constante que anuncia o fim e que, ao mesmo tempo, reafirma com seu deboche silencioso todo lado patético dos tipos solitários, toda a impossibilidade destes homens terrivelmente tristes em sair dos próprios cárceres. A apatia de Hugo é quebrada rapidamente quando ele avança sobre Sandro num gesto de violência.

Contudo, é com a chegada de Adriana que algo realmente estremece as estruturas de Hugo: ela regressa a Lisboa numa rápida passagem, mas é o suficiente para fazer com que Hugo deixe seu habitat e passe algum tempo com ela em um café e à beira de um rio.  O encontro é de poucas palavras, mas os silêncios e os olhares trocados evidenciam uma vida conjunta pregressa, algo que Hugo não conseguiu dar conta e da qual Adriana já se emancipou. Há uma estranheza em vê-lo em um lugar que não seja o trabalho, quase como um vampiro andando em plena luz do dia. Adriana possui uma presença solar, de um magnetismo que parece dragar tudo para a sua órbita, mas esta sua presença evidencia ainda mais a escuridão de Hugo. Daquela relação, resta o fantasma.

Em A vida Invisível tem-se a sensação de que tudo já se passou e agora se caminha sobre as ruínas. Há sempre uma incomunicabilidade entre as personagens, impasses em que se percebe que ainda há muito por dizer abaixo das camadas de silêncio.   É um filme tardio, em que as relações nunca são vividas com a consumação dos desejos, mas a partir do espectro de suas passagens, de seus passados.  Tanto Hugo quanto António são homens que habitam um tipo de limbo assombrado pelo desaparecimento. Enquanto António, enfim, liberta-se através da morte, Hugo permanece vivendo tendo que carregar a si mesmo num mundo em dissolução.  De António, restam os rastros nos filmes de 8mm. De Hugo, permanece a sua figura deslocada e espectral, preso em si mesmo enquanto o mundo avança em seu movimento contínuo.

Os filmes 8mm de António ficam como uma herança para Hugo. Poderia se dizer que aquelas imagem funcionam como um recado de que há qualquer coisa que deixamos pelo caminho e que é preciso reaver, funcionando como a evidência das possibilidades de vida que ele, ainda gozando de certa juventude, pudesse abraçar para que não termine seus dias tal qual António, morrendo sozinho. Contudo, cada uma daquelas imagens são blocos de passado condensado cuja reprodução no presente acentua ainda mais a solidão e a incapacidade de Hugo em fugir de sua sina. Perto do fim, Hugo assiste a um destes filmes – mais uma paisagem em movimento – e, numa narração em off, ele reflete sobre seu breve reencontro com Adriana; sua conclusão é a de que aquela imagem, de um mundo e de uma vida tão distantes, era como o espaço intransponível entre ele e Adriana – uma lacuna que se soma  àquela cujas imagens reafirmavam sobre tudo o que se ficou por dizer entre ele e António. Os 8mm não seriam abraçados como convites à distância a ser percorrida ou a vida compartilhada, mas antes seriam apenas um ponto de luz no meio da escuridão do limbo em que Hugo continuará habitando.

A cena final é absolutamente impactante: o Palácio do Terreiro do Paço, já completamente vazio, está iluminado por uma luz solar que faz as paredes brancas parecerem ainda mais ofuscantes. Hugo caminha pelos mesmos espaços que o abrigaram no cotidiano de seu trabalho e nas suas noites de misantropia. Sua figura, à luz do dia, torna-se mais fantasmática, como um vulto escuro traçando a brancura do ambiente, quase como uma presença que assombrará aquelas salas e corredores, uma vez que sua impossibilidade de transgredir a própria melancolia e solidão continuará existindo para além do desaparecimento dos espaços físicos que lhe eram alicerces.

Talvez não seja papel de uma crítica cinematográfica conjecturar sobre a vida privada de um realizador, mas os dois únicos filmes de Vítor Gonçalves e o espaço de tempo entre eles mostram além de uma elipse pessoal, um comentário contundente sobre a passagem do tempo e sobre contemplar a própria solidão. É como se Vitor regressasse de sua própria prisão interior a fim de refletir sobre este gesto de eclipsar a si mesmo.  Desde então ele não lançou mais nenhum filme. Fica aqui o desejo de que não tarde para que se possa ter uma nova obra sua e que os filmes disponíveis sejam cada vez mais vistos.

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