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Críticas

Alma Viva

Portugal do passado com o pé no presente. E vice-versa

Por Ivonete Pinto | 18.07.2023 (terça-feira)

O novíssimo cinema português se realiza olhando para trás. E isto não é atraso; é investir na contemporaneidade pagando tributo às raízes fincadas nos vilarejos. Aqueles que ainda mantêm vínculos com uma religiosidade que a vida moderna não admite mais. 

Alma viva (2020), por isto, nos remete a um Miguel Torga, que em  sua obra soube tão bem recuperar o habitus das pessoas da região  de Trás-os-Montes, no nordeste português (segundo os créditos, o filme foi rodado entre os  municípios de Vinhais, Vimioso e Mogadouro). Um jeito de pensar, um jeito de agir e de falar associado ao mundo rural. E ao entrarmos nesta viagem pelo olhar de uma criança, o enredo pode ganhar até um caráter universal.

A jovem diretora Cristèle Alves Meira, em sua estreia no longa-metragem,  abre o filme com uma reza. Nem as imagens se firmam na tela já temos o tom de tragédia marcado por um velório e uma menina, a protagonista Salomé (Lua Michel), a espiar a dor dos adultos por um buraco na parede. A dor que ela mesma vai experimentar quando morre a avó, com quem tinha uma relação de muito afeto.

“Alma Viva” imerge na contemporaneidade ao explorar as raízes de um Portugal rural.

Custamos um pouco a entender, mas Salomé mora na França, país que algumas vezes aparece como uma solução para todos (e que não por acaso é parceira na coprodução do filme, junto com a Bélgica). Ela está de férias na casa da avó, onde vivem também um tio cego e uma tia, daquelas tias chamadas de solteironas. É bastante estimulante ir descobrindo gradualmente, sem informações prévias,  as relações entre os personagens e o cenário antropológico da aldeia.

Não saber nada do enredo dos filmes às vezes se revela como uma experiência das mais interessantes. Apenas nos deixamos levar pela imaginação prodigiosa de Salomé. Quem já passou férias na casa dos avós sabe que a fantasia nesta idade não tem limites.

O olhar infantil sobre o mundo adulto: o processo de amadurecer.

A menina observa um mundo onde ainda existem pescarias obtidas com explosões na água, habitantes que convivem com motos,  celulares,  cabras, cantorias, estátuas de São Jorge,   velhas bruxas e demônios. A tudo isto Salomé está afeita. Impactada com a opinião da avó, se convence de que é especial, que o espírito dos mortos pode “se agarrar nela”, entrar em seu corpo, ou coisa parecida. 

A delicadeza da menina Salomé – a força do seu olhar vale o filme – é contraposta à forma rude com que as pessoas se tratam e se expressam. A vizinha “bruxa”, a avó, a tia e o tio estão sempre se xingando e mesmo quando conversam normalmente, o tom é agressivo, cheio de palavrões. Toda população funciona assim. Seria uma espécie de rudeza inerente de quem vive entre imensas montanhas, “longe demais das capitais”. Como se ninguém tivesse olhando mesmo para eles, se a vida é dura e o conforto inatingível, por que haveriam de ser finos e elegantes?

No filme, este traço da cultura – também atribuído a quem vive no interior da Itália –  está sempre resvalando à generalização irresponsável. Há, para o espectador que olha de longe, uma visível exotização do modo de vida dos aldeões; não por invenções ou eventuais exageros de direito das ficções, mas por causa da nossa resistência em acreditar que na idealizada Europa possa haver tanto ocultismo. Afinal, esta é a seara dos estereótipos dirigidos aos latinos e aos africanos, não? 

No entanto, trata-se do olhar de uma diretora europeia, no livre exercício de um cinema autoral, que situa seu cinema justamente nesta tentativa de entender o presente através do passado ainda em voga. 

Um olhar sensível que capta e assimila tudo ao seu redor.

E neste entorno cultural, Cristèle Alves Meira constrói a personagem da menina com inocência e com um alcance para além dos montes. Como uma esponja, ela é vulnerável a tudo o que vê. A alegria dos adultos nas festas, o jeito grosseiro das pessoas e, principalmente, os efeitos de uma religiosidade torta em que acredita de fato ter poderes sobrenaturais, fazem dela alguém que sofre. Sofre porque assume a culpa da morte da avó, mesmo contra todas as evidências em contrário. O filme de alguma maneira também acredita nisto, mesmo que em chave metafórica. Ao menos se levarmos em conta essa frase do personagem cego: “Mais cedo ou mais tarde, todas as mulheres independentes serão acusadas de bruxaria.” Os personagens cegos, desde as tragédias gregas simbolizam a sabedoria. Assim, a frase pode ser lida como um ato de fé da diretora e roteirista. Para as mulheres, a Idade Média insiste em dar as caras.

Como Miguel Torga, Alves Meira também é da região de Trás-os-Montes e também produz uma espécie de poesia etnográfica, que contou com atores profissionais e não profissionais que vivem ali mesmo. Não é a primeira a fazer isto, por suposto, mas representa uma geração que explora a diversidade temática e de estilo  do cinema português atual, que na próxima edição do festival de Locarno vai aparecer em vários títulos  da programação. A ver.

O filme foi exibido na Semana da Crítica do Festival de Cannes e representou Portugal na disputa pelo Oscar de Melhor Filme estrangeiro. Lançamento da Imovision, estreia em algumas capitais no próximo dia 27.

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