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Críticas

Medo e Delírio

Pela ótica do ácido, uma visão mais clara (e alucinada) dos EUA nos 1960s

Por Luiz Joaquim | 14.07.2022 (quinta-feira)

– texto originalmente publicado em 12 maio 2000 no Jornal do Commercio (Recife), página 7  sexta-feira.

Aquele que faz de si uma besta livra-se da dor de ser humano. A frase que abre o texto também abre Medo e delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, EUA, 1998), cartaz da Sessão de Arte do Multiplex Recife e São Luiz. A expressão dá uma pista sobre o que significa o uso de drogas para os criadores do longa-metragem: no caso, a do diretor Terry Gilliam (Os doze macacos) e a do roteirista Toni Grisoni.

Os realizadores de Medo e delírio colocam a plateia em 1971, na companhia de dois pirados em constante estado de embriaguez causada por um novo narcótico superpotente ingerido a cada cinco minutos de película rodada. Eles são os jornalistas Raoul (Johnny Depp, calvo)e seu advogado, Dr. Gonzo (Benício del Toro, barrigudo). Para se ter a ideia do tamanho da lombra vivida pela dupla de protagonistas, basta saber que suas viagens lisérgicas fazem os delírios experimentados pelos personagens de Trainspotting  parecer um sonho enfadonhoe burocrático.

O rumo pelo qual o ex-Monty Phyton conduz a história de Medo e delírio é a exacerbação extrema que o efeito de um alucinógeno provoca na mente humana. Mas tudo não passa de um pano de fundo surrealista para critica a contracultura dos anos 60; Timothy Leary e seu LSD; o presidente Nixon; e o ‘sonho americano’ de vencera qualquer custo.

Apesar do estilo arrojado e do ótimo humor que envolve o protesto cinematográfico de Gilliam, a fórmula soa exagerada e pretensiosa (mas nunca cansativa, vale salientar). A história saiu do livro do jornalista Hunter Thompson e, levada ao cinema, remete a outras obras já projetadas na telona. Como Drugstore cowboy, de Gus Van Sant.

Del Toro (e) e Depp, em viagens literais e não literais

Como Peter Fonda e Dennis Hopper em Sem destino, Depp e Del Toro cruzam uma auto-estrada. O veículo aqui é um conversível “da cor do fogo”, com o porta-malas abarrotado de maconha, cocaína, éter, metadona, mescalina, metherdrine e a mais potente delas: adrenochome, feita a partir da glândula supra-renal humana (!). Eles estão a caminho de Las Vegas onde Raoul vai cobrir o enduro Mint400 no deserto de Nevada. Mas o que eles curtem mesmo são os quartos de hotéis, onde podem fazer uma ‘viagem interior’ e discutir assuntos como sapatos de golfe e a relação sexual entre cães e representantes religiosos.

Depois de dar por encerrada a cobertura da corrida antes que ela realmente inicie, o jornalista vai parar em outra cidade, apinhada de oficiais, onde pretende fazer uma matéria sobre a 3ª Convenção Nacional de Promotores contra Narcóticos e Drogas Violentas. Nada mais irônico e divertido. No meio disso tudo, a ótima caracterização de Depp como o perfeito estereótipo do cidadão americano deslumbrado: bermuda e camisa estampada, óculos escuros desproporcionais, um sotaque irritante e uma inseparável piteira na boca.

Depp e Maguire: Jesus Cristo?

Sem falar nos personagens secundários que complementam o ambiente delirante: o caroneiro que os road junkies tomam como Jesus Cristo (Tobey Maguire, de Regras da vida); e a menor Lucy in the sky with Diamonds (Christina Ricci), que vive a fazer retratos de Barbra Streisand.

No final, fica a impressão de que as imagens deformadas mostradas por Gilliam através dos olhos de Raoul e do Dr. Gonz querem dizer que essa era a única visão possível daquele momento da história norte-americana. Seja sob o efeito do ácido ou não, tudo era , enfim, uma grande droga sem volta; e o sonho americano era, na verdade, uma estratégica balela.

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