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Críticas

Marte Um

“Estou viva”

Por Humberto Silva | 24.08.2022 (quarta-feira)

Marte um, dirigido por Gabriel Martins, segue tendência que tem se notabilizado não só nas produções da Filmes de Plástico, mas também em outras realizações do cinema brasileiro recente: o olhar para o cotidiano da classe média baixa; mais pontualmente, para o universo social de famílias negras.

Nesse olhar, me parece inevitável pensar na camada sociológica. A questão chave a esse respeito é: como retratar um seguimento social bem marcado sem cair em estereótipos? A Filmes de Plástico, principalmente com os filmes de André Novais, tem se saído muito bem nesse intento.

E Gabriel Martins é igualmente feliz com a realização de Marte um. Uma fita que se retém no universo doméstico de uma família na periferia de Belo Horizonte. Na verdade, de Contagem, uma cidade satélite, onde, pois, fronteiras são imprecisas.

O núcleo familiar: pai, mãe, filha pós adolescente e filho pré-adolescente. O pai é porteiro num condomínio de classe média alta. A mãe é faxineira no apartamento de uma personalidade do show business. A filha faz faculdade. O filho joga futebol num time de várzea.

O pai sonha com uma carreira gloriosa como jogador de futebol para o filho. A filha busca expandir seu universo social e sair de casa para viver com a namorada. O filho é fascinado por astronomia e quer ser astrofísico. A mãe é o ponto de equilíbrio no ambiente doméstico.

Os personagens que compõem o núcleo central da trama são devidamente apresentados. O ponto de virada na narrativa ocorre quando a mãe acaba envolvida numa pegadinha violenta para a televisão. Ela passa a ter o sentimento de que atrai coisas negativas para quem estiver ao seu redor.

A narrativa, então, evolui para um desfecho no qual as expectativas de todos acabam frustradas. Ao final, contudo, a família permanece unida.

Trata-se de um filme terno, conduzido num clima de melancolia, sem exasperações e conflitos insolúveis. E que parece se fechar com uma mensagem de resignação. Nada dá certo, mas a vida segue em frente.

Assim, a família se recompõe e todos permanecem presos ao ciclo de sonhos que não se realizam. Com isso, diante de frustrações que resultam da realidade tangível de que não escapam. Da camada sociológica a se considerar, pois, certo viés determinista.

Em decorrência, assim entendo, a perspectiva mais sensível em Marte um. A mobilidade social é algo como uma loteria. Casualmente alguém escapa e rompe as fronteiras da periferia.

Mas esse é um golpe de sorte. E no caso da família retratada por Gabriel Martins, se esse lance de sorte ocorreu ele se deu quando a mãe escapou de um acidente fatal numa frustrada viagem de ônibus. Sem dar explicação a quem está ao seu lado ela diz: “estou viva”.

De Marte um destaco o tratamento dado ao futebol. Tão relevante na vida social e cultural do país, ele é frequentemente abordado de forma tímida. Com raras exceções, o cinema brasileiro lhe é estranho.

O craque Deivinho é o camisa 10

Não tão recente, e com olhar igualmente para o ambiente familiar, tenho na memória Linha de passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas.

Marte um faz um recorte que não só me parece interessante, pois revela o sentido de fundo da trama. O futebol, principalmente, concebido como meio de ascensão social. Só que jogar futebol em um grande clube, alcançar a glória, ganhar muito dinheiro, é uma ambição, sonho, tão difícil quanto o de fazer uma viagem ao planeta Marte.

Há outros aspectos que igualmente poderiam ser ressaltados. A sexualidade da filha, o alcoolismo do pai, o alheamento do filho quanto a carreira no futebol, o misticismo da mãe. Mas, assim enxergo, esses outros aspectos confluem para um ponto central: a mudança de padrão de vida em que se encontram; a transposição, enfim, da barreira social.

Por isso, fica no ar uma marcação temporal. A ação se dá com a chegada ao poder da extrema direita com Jair Bolsonaro. Mesmo que o filme apenas lateralmente se refira a esse momento, o sentimento do quanto a vida ficou dura para a classe média baixa.

– leia também crítica de Luiz Joaquim para Marte um (link abaixo) por ocasião de sua exibição no 50º Festival de Cinema de Gramado.

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