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Críticas

O Perdão

Contenção e arrebatamento

Por Ivonete Pinto | 21.09.2022 (quarta-feira)

O perdão (Ghasideyeh gave sefid , 2021) está de certa forma alinhado a um cinema ativista iraniano, que antes chamávamos de cinema de denúncia, no qual Jafar Panahi é o nome mais conhecido no exterior. Mesmo que seu leitmotif esteja na excrescência que representa a pena de morte, o filme mostra-se menos maniqueísta, pois as outras situações de denúncia (situação da mulher, uso de drogas, hipocrisia religiosa e judicial) são mais ou menos orgânicas e não abarcam o universo iraniano como um todo. Ou seja, o roteiro dosa bem os elementos, não enfileirando no roteiro múltiplas acusações quanto aos podres do regime e da sociedade. Até porque, ao que parece, existe a legítima intenção de ser exibido para plateias internas.  Ele estreou no Fajr Film Festival de Teerã, onde não necessita de liberação prévia da censura, mas ainda não foi lançado comercialmente por lá, pois depende de uma autorização governamental. Os sinais não são bons, já que foi impedido de ser indicado para concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro do ano passado. Diferente dos filmes de Asghar Farhadi, está sofrendo boicote. O perdão foi feito de modo independe, com poucos recursos, porém conta com coprodução da França, que ao menos garante distribuição no exterior e já participou de vários festivais, como a Berlinale do ano passado.

O título em inglês,  Ballad of a white cow , confere com o original persa, que remete à mais longa sura do Corão, a sura da vaca. O perdão inclusive abre com a imagem de uma vaca branca no pátio de um presídio e faz citação direta ao livro sagrado muçulmano, referindo-se à condenação de um inocente. Também faz menção à necessidade de as pessoas lutarem contra o que é vil. Pois a sura, desta forma, condensa a essência do filme: uma mulher luta para que os juízes que condenaram seu marido à morte baseados em falso testemunho, peçam desculpas a ela, já que o próprio sistema admitiu o erro um ano depois.

Moghadam (e) em atuação segura e econômica

Maryam Moghadam  codirige O perdão com o marido Behtash Sana’i. Juntos, durante nove anos escreveram o roteiro baseado na história da mãe de Moghadam, que também teve o marido, pai da diretora, executado porque fazia oposição ao regime. Naturalmente, se o espectador tem ciência deste fato, o filme passa a ter um sentido mais trágico, mas qualquer pessoa minimamente humanista fica abalada com a história de Mina, vivida pela própria diretora, que é atriz (Cortinas fechadas, de Panahi, por exemplo). O périplo para sustentar a filha sozinha, somando ao fato de ser despejada de casa, enfrentar o preconceito de vizinhos e parentes e ter que lidar com a injustiça quanto à morte do marido. Mesmo só no âmbito ficcional, desde logo provoca a adesão do público.

A compensação e o leite – Como manda a lei nestes casos de erro jurídico, é oferecida à viúva uma indenização de 270 mil tomans  (cerca 330 mil reais). O burocrata que dá a notícia à Mina diz que lamenta, mas que de qualquer forma foi a “vontade de Deus”. Neste momento, o choro dela é arrebatador. Um choro mais para dentro do que para fora. A performance de Moghadam, segura,  econômica,  ao mesmo tempo entrega muita emoção. Imagina-se que um choro desesperado, catártico, seria reprimido pela autoridade ali naquele ambiente. Contudo, faz parte do estilo do filme a contenção. A despeito de estarmos diante de um melodrama em termos de enredo, a encenação todo o tempo é contida, incluindo a trilha sonora. Também o juiz que se corrói com a sentença de morte que assinou tem sua emoção travada.

Leite: símbolo de purificação, ou mesmo o contrário

Entre os vários simbolismos que O perdão propõe, há o leite. Mina trabalha em uma fábrica de leite de caixinha, num ambiente todo branco. Em suas visitas ao poder judiciário, vemos ambientes também são claros, quase assépticos. Ela e a filha aparecem bebendo leite em algumas cenas. O leite pode ser um símbolo purificador, como pode ser o seu contrário. Independentemente de estar sendo usado como código dos supremacistas brancos até no Brasil, no filme ele terá uma função libertadora.

A construção de Maryam Moghadam para a protagonista traz nuances que não a torna linear. Vítima, mãe dedicada, sofrendo horrores com o que aconteceu com o marido e os desdobramentos disto numa sociedade tão discriminatória para com as mulheres e para com os pobres, Mina tem comportamento ambíguo em relação ao amigo do marido Reza (Alireza Sani Far), que aparece para lhe dar um dinheiro que teoricamente o marido devia a ele. A falta da pergunta básica sobre se ele tem uma esposa seria uma inconsistência da personagem, uma fragilidade do roteiro. Mas numa leitura mais além, podemos pensar que simplesmente ela encontrou neste homem atencioso tudo o que não havia conseguido desde a morte do marido. Todos estão contra ela, que precisa esconder a execução para a filha, para os professores dela na escola, como se ela fosse culpada. Este comportamento é sutil e progressivo, indo desde um magnaeh (o véu usado no Irã, que compõe a vestimenta hijab) preto substituído por um marrom e um verde, até gestos mais diretos, como convidar o homem para ir ao cinema com ela e a filha.

Tributo e atributos – O cinema, aliás, é mediador de boa parte da história. A filha adora filmes, tem seu nome em homenagem a uma personagem de um filme antigo iraniano e permite a passagem de informações nas entrelinhas, em pequenos toques para audiências iranianas, como a conversa sobre Googoosh. Celebridade nos anos 1970 no Irã, enquanto cantora pop e atriz de filmes de sucesso, precisou se exilar no Canadá após a revolução islâmica de 1979, já que a voz das mulheres passou a ser interdita (ver aqui crítica sobre Escondida, filme de Panahi onde o tema foi desenvolvido).

O fato da filha Bita (Avin Porreoufi)  ser surda e por consequência não falar, funciona como mais uma metáfora da condição das mulheres. Desde cedo ela sabe que terá sua voz sufocada naquela sociedade. No entanto, ao contrário do que se pode concluir, as mulheres iranianas são muito fortes e em função disto possuem a liberdade de estudarem, escolherem suas profissões e se casarem com quem quiser. O que não impede a misoginia e sua palavra valer menos do que a de um homem, graças a sharia (a constituição baseada no Corão).

Mina (Moghadam) com a filha surda, Bita (Parreoufi), mantendo segredo sobre a condenação de seu pai.

A atriz para viver Bita foi selecionada em um teste, ela não é surda, mas seus pais são e ela conhece a língua dos sinais.  A sintonia entre as duas é bastante perceptível e rende bons momentos. Também coube à personagem demonstrar um dos traços da cultura, como o pequeno gesto de tirar o magnaeh da cabeça assim que sai da escola. Nas ruas, meninas de dez anos não precisam cobrir os cabelos.

Neste quesito, Maryam Moghadam presta tributo à diretora  Tahmineh Milani, em cujos filmes costuma (ou costumava) criar situações bem-humoradas para mostrar mulheres dentro de casa com o cabelo coberto sem que o realismo fosse ferido. Mina não tira o véu nem dentro de casa, mas em uma cena em que pinta os cabelos ajudada pela filha, ela mantém uma touca plástica na cabeça, passando o pincel apenas nas pontas. No Irã, a cena seria motivo de muita risada.

A diretora Moghadam em evento de “O Perdão”

Sem ser discursivo, o filme toma posição sólida contra a pena de morte e a condição das mulheres. Não é original nem num nem noutro assunto. Recentemente, a pena de morte foi tema de outro filme iraniano, Não há mal algum, de Mohammad Rasoulof  (ver crítica aqui). As diferenças estão, primeiro, na origem da história, inspirada na própria experiência da mãe de Maryam Mogaham; segundo, na sutileza de infiltrar de modo natural aspectos nefastos da cultura e da lei islâmica no Irã; terceiro, de ser um filme que explora a linguagem do cinema sem  exibicionismos, porém  de maneira criativa; quarto, do roteiro ter driblado bem as armadilhas de um desfecho que se supunha trágico,  e quinto, mas não menos importante, de termos uma mulher, ainda que em codireção com um homem, assumindo uma produção corajosa, de cunho político até a raiz dos cabelos cobertos. E se ainda pudermos trazer mais um atrativo, ele está no suspense que se dá porque o espectador sabe quem é o estranho, suposto amigo do marido de Mina. Em um filme de gênero suspense, o espectador se opõe à surpresa, seu envolvimento emocional com a identidade do assassino está em saber como a personagem irá reagir quando souber quem é ele. Assim, de olho na reação de Mina, o filme mantém uma tensão permanente.

O perdão é um lançamento da Imovision e tem estreia amanhã (22).

Nota da autoraConheci a diretora Maryam Moghadam há cerca de 20 anos. Apresentada por um amigo comum, andei com ela em seu alquebrado Fiat 147 pelo trânsito caótico de Teerã. Maryam acabara de voltar da Suíça, onde se graduou em Artes em  Gothenburg, e já se comportava como seus conterrâneos, dirigindo desatinada, ignorando semáforos, cortando uns e outros. Aproveitei a “aventura” para tirar o véu dentro do carro e testar a reação em nossa volta. Perdemos o contato, anos depois a vejo como atriz de Panahi e agora como diretora no surpreendente O perdão. Lembro que nas conversas ela falava da mãe, nenhuma palavra sobre o trágico fim de seu pai.

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