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Festivais

44ª Mostra SP (’20): Masters in Short, Escondida

Panahi esconde o jogo

Por Ivonete Pinto | 15.11.2020 (domingo)

– acima, cena do curta-metragem Escondida, de Jafar Panahi.

Mesmo com uma programação numericamente menor do que em anos anteriores, a 44ª edição da Mostra de São Paulo não conseguiu dar a devida visibilidade aos curtas reunidos em Masters in short. Apesar de nomes conhecidos assinarem as produções, como Jia Zangke,  Sergey Loznitsa e  Jafar Panahi.

É compreensível, pois o apelo comercial se dá mesmo no formato do longa-metragem, e o público tende a pensar que uma junção de curtas é apenas um experimento que não deu certo. Isto reflete na cobertura da crítica.

Acontece que cada um destes curtas poderia render reflexões apaixonadas; cada um funciona como uma unidade autônoma e reflete a visão estética de seus realizadores. Este artigo se detém apenas em um deles, que é o último na montagem de Masters in short, Escondida (Hidden, 2020),  de Jafar Panahi.

Originalmente, o filme de Panahi faz parte do longa Celles qui chantent, de um programa da Opéra de Paris, no qual a voz feminina é a inspiração para quatro curtas de quatro cineastas, três homens e uma diretora: Panahi, Loznitsa,  Julie Deliquet e Karim Moussaoui. No de Loznista, Maria Callas é o centro de uma espécie de investigação contemplativa sobre o poder misterioso da voz das mulheres, ou algo assim. Quando lhe propuseram o filme, Panahi não tinha muita saída a não ser mostrar que este “mistério” lá é proibido.

Por baixo dos panos – Jafar Panahi já possui uma sólida filmografia. Por momentos, parece que perdeu o fôlego, parece que sucumbe à própria condição de cineasta que precisa estar sempre a fazer denúncias, como em O Círculo (2000) e Fora de Jogo (2006). Sua grandeza não está em dar publicidade ao obscurantismo do regime islâmico, mas na forma inventiva como trata este obscurantismo.

Em Isto não é um filme (2011) , seu primeiro filme após a condenação, conseguiu reverter a falta de liberdade a seu favor. Ele podia sair do apartamento, não estava confinado, mas o jogo era difundir ao mundo a sentença que recebeu e a forma encontrada resultou em um sopro de criatividade. Já em Cortinas Fechadas (2013), a impressão é que seu talento havia se esgotado. Enredado nas metáforas envolvendo a falta de liberdade, recorreu  a clichês fáceis de filme de suspense, com entradas no terror. Táxi Teerã (2015)  é um Panahi cheio de maneirismos, um tanto fake, em que ele é um motorista de táxi falando com seus passageiros e emulando Dez, de Kiarostami. Em 3 Faces (2018) veio mais revigorado, ainda investindo nas artimanhas da mistura de fato e ficção, mas mais imaginativo. Percebemos ali  que não era o caso de abandonar o interesse por este cineasta que, todos sabem, sofreu uma pena absurda  de seis anos sem filmar e 20 anos sem sair do País. Tudo porque registrou sem permissão eventos de rua, em 2010, que documentavam à reação à reeleição fraudulenta do presidente  Ahmadinejad. Todos sabem também que ele não obedeceu à sentença, tendo filmado  Isto não é um filme. Na sequência, vieram vários outros, rodados às escondidas, mas que se tornaram obras públicas, exibidas com festejos no exterior.

O regime sempre soube de suas filmagens e continuou praticando um jogo de forças com Panahi. Um finge que não sabe, o outro que não filma. Passados os seis anos da pena, Panahi  continua censurado, pois para rodar um filme no Irã é preciso ter uma liberação prévia, já na fase do roteiro. E o diretor parece aceitar a condição de refugiado no próprio país. Sem passaporte, não tem como viajar.

O interesse em sua produção, não custa frisar, não vem daí, ou só daí. Seus filme anteriores à restrição de ordem jurídica, suas parcerias com Abbas Kiarostami, seu mentor e amigo, representam um estado da arte do cinema iraniano, aquele que tão bem ilustra um certo imaginário forjado com O Espelho (1997). Nele, estava já fincada a matriz de outro jogo, aquele da linguagem do cinema, onde a verdade é mentira e a mentira é verdade. Ou melhor, onde tudo é trapaça porque estamos no cinema.

Pois Escondida sofistica esta trapaça e, de novo, boa parte dos espectadores  compra a camada mais aparente, aquela em que o cineasta e sua filha (Solmaz Panahi) ajudam uma amiga curda (Leyla Khezri), que estava procurando uma menina com incrível talento como cantora. Eles estão em um carro, a filha de Panahi sentada atrás filma a conversa dos dois, além de uma câmera fixada no painel do carro. Quando o diretor avisa a amiga da existência da câmera no painel,  é a mensagem para o espectador de que o dispositivo está aberto, tudo é transparente, tudo é real. Um documentário daqueles sem roteiro.

Chegando à casa em que vive a jovem com voz especial, a mãe dela está varrendo o pátio e após, supostamente, conversar com o marido, dá permissão para que Panahi entre na casa, porém a jovem não poderá ser filmada. Na casa, a pedido de Panahi, ela canta atrás de um lençol casualmente armado ali.

Still de “Escondida”

Há inúmeras considerações possíveis, na ordem do contexto cultural religioso, que esclarecem um pouco mais uma informação que está dada na sinopse do curta. Ela  diz  que “Panahi viaja em busca de uma jovem com uma voz encantadora que foi proibida de cantar pelas autoridades iranianas”.  No Irã, desde que a invasão muçulmana das tropas de Maomé subjugou o Zoroastrismo, as coisas foram ficando difíceis para as mulheres.

A proibição de mostrar os cabeços é uma delas. No regime  mais moderno e tolerante, o da dinastia dos Pahlevi  (1925-1979) , as mulheres tinham liberdade, embora pouco exercida, pois a força da religião e da cultura fala mais alto do que decretos governamentais; nas mesquitas suas vozes também eram interditas. A proibição de cantar em público, em qualquer lugar,  só virou uma interdição com a revolução islâmica de 1979, que para agradar ao clero xiita, os “cidadãos de bem” foram tolhendo a liberdade das mulheres e uma delas está no canto.

No cristianismo ortodoxo do Império Bizantino, o mesmo se dava e os castrati foram inventados para substituir a diabólica voz feminina.

O canto do muezim, aquele que toda mesquita tem para chamar a reza, é praticado por homens, jamais por mulheres. A voz feminina seria por si só indecente, com poder de seduzir os homens. Argumentação mais ou menos aplicada no caso da proibição de mostrar os cabelos. Portanto, ao fim e ao cabo, são proibições que dizem respeito à libido masculina, incontrolável. Uma criança poderia sugerir que os homens  fossem presos em  jaulas acústicas que o problema estaria resolvido…

Excrescências – No Irã, antes da revolução, havia até uma estrela pop, a cantora e atriz Faegheh Atashin. Conhecida como Googoosh, fazia enorme sucesso, inclusive no cinema. Com o regime dos aiatolás, precisou se exilar no Canadá e até hoje há quem suspire por ela.

Atualmente, nas estações de rádio são permitidas músicas não religiosas. Canções populares em farsi e em árabe podem tocar o dia inteiro, mas só cantadas por homens.

Ou seja, o que o Irã vive hoje, neste sentido, é uma excrescência. Eles que condenam tanto o radicalismo dos sauditas, praticam esta violência inconcebível contra as mulheres.

E o filme de Panahi traz mais complexidade ao tema. Apesar de ser um curta, sem tempo para maiores aprofundamentos, ele deixa claro que a menina cantora é curda. A própria amiga que o leva lá  é curda e cabe a ela explicar “a Panahi” que os curdos são mais modernos, porém em algumas famílias a extirpação do clitóris ainda é uma prática.  Os curdos que vivem no Irã (trata-se de uma etnia que não tem país, ocupa uma região entre Turquia, Irã, Síria e Iraque) são muçulmanos sunitas. Diferente do senso comum ocidental que vê os xiitas como radicais, certos grupos sunitas também  perpetuam violências, arbitrariedades e leituras distorcidas do Corão.

Então, em Escondida, temos uma aparente e singela história de uma jovem proibida de cantar em público. Uma mulher que canta, mas não pode aparecer. Um diretor que filma, mas não pode mostrar seu filme.

 

Para além da metáfora banal,  há outros sedimentos  ocultos neste curta.  Não vamos esquecer que Panahi continua fazendo filmes para público estrangeiro, para o qual um aprofundamento do contexto não interessa. Ele continua explorando a manipulação inerente a este cinema que hibridiza fato e fantasia e camufla de seu público que está fazendo um filme com roteiro, com equipe, com mise-en-scène. Veja nos créditos que há um câmera além de Panahi e de sua filha. Ouça com atenção a qualidade da captura de som quando a menina canta.

Naturalmente, uma estrutura de produção, ou mesmo uma pensada mise-en-scène, não diminui nem aumenta a importância deste curta. Como denúncia, não há consequência, pois não há entendimento do que significa uma mulher ser proibida de  cantar “pelas autoridades”. Já como exercício de linguagem,  Escondida encontra adeptos entre os que desconhecem os procedimentos de Panahi (nos quais Kiarostami foi o mestre) e ingenuamente compram o filme como um documentário sem intervenção autoral. E também há admiradores entre os cinéfilos que perscrutam quais os caminhos estéticos que um diretor pode percorrer na circunstância da privação de liberdade.

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