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Festivais

26ª Tiradentes (2023) – “O Canto das Amapolas”

Sobre as profundezas misteriosas da arte como instância de criação

Por Marcelo Ikeda | 30.01.2023 (segunda-feira)

– na foto de de Jackson Romanelli, Paula Gaitan e equipe de O canto dos Amapolas

É impressionante como Paula Gaitán vem dando continuidade a uma pesquisa consistente e perene em torno de uma poética do cinema – uma combinação simbiótica entre documentário, ficção e ensaio visual, que rompe com a proposta de uma dramaturgia narrativa para buscar uma aproximação entre cinema e artes visuais por meio de uma investigação poética em torno da ampliação dos sentidos.

Num cinema e numa socidade brasileiros cada vez mais regidos pelo patrulhamento da vida social em que tudo parece girar em torno de nossa dependência das macropolíticas de Estado, é impressionante como, em suas aparições públicas, Gaitán se afasta de qualquer resquício de populismo demagógico para se debruçar sobre as profundezas misteriosas da arte como instância de criação. O debate com Gaitán, na manhã seguinte à exibição de seu filme, foi um daqueles raros momentos iluminados, em que parecia ser possível viver pensando o cinema e a vida em suas expressões puras, nada mais, nada menos. Esse despertar de nossa experiência sensível que parece estar sufocada diante da imposição de pautas de urgência. Essa é a importância vital de seu cinema nos dias de hoje.

Nessa perspectiva, O canto das amapolas resgata uma certa vertente do cinema de Gaitán, que é a investigação poética do cinema em primeira pessoa, numa linha que evoca alguns de seus trabalhos, como Diário de Sintra ou o curta Memória da Memória. Em primeiro plano, a relação direta, franca, da própria realizadora com sua mãe. A filha pergunta à mãe sobre questões de seu passado, de sua vida pessoal. Segue-se um conjunto de informações mas que o filme não demonstra especial interesse em revelar ou desvendar. A mãe procura relatar à filha questões de seu passado, mas muitas delas vão permanecer, ainda assim, sob o manto do mistério. A mãe e a filha nunca são vistas como imagem em cena, mas permanecem no extracampo. Há algo doce, mas também ríspido na relação entre as duas. Não se trata propriamente de uma situação de confronto, mas de certo modo há ali um abismo que nunca será atravessado. Penso, assim, nos limites do relato oral, ou ainda, nas impossibilidades da linguagem em dar conta do passado, de rememorar o que foi. Como já nos disse Hiroshima, meu amor, mesmo que vejamos as fotos e tenhamos acesso às informações, ainda não vimos nada, ainda há tudo a ser visto e contado, pois todo esse conjunto de coisas nos relata de forma meramente parcial a experiência do vivido.

Essa mãe e essa filha permanecem no extracampo. O que vemos? Sombras das vozes das duas mulheres, o vento a balançar a cortina da sala, objetos e mais objetos nos aposentos da casa vazia, espaços ermos em paisagens apartadas dos centros urbanos. Algumas vezes uma mulher caminha como uma bailarina por entre campos e jardins, em certo momento mergulha num lago. Em outro, a lápide de Mendelssohn volta a assombrar a imagem. Pois afinal, quem seriam as amapolas que ainda cantam?

Imagem de “O Canto dos Amapolas”

Pois, para além do diálogo entre mãe e filha, as sombras do passado projetam um segundo plano: não apenas a família, mas a Alemanha, os desafios e angústias de uma jovem judia a crescer no país, os fantasmas da família durante a guerra. Entre as memórias do passado vistas no presente, e entre a Alemanha vista por essa brasileira-colombiana, penso na questão do extracampo. O extracampo (por exemplo, um plano de um bando de pássaros que ganham voo em torno de uma cadeira vazia e se perdem no horizonte, um plano quase de um universo maureano – ou ainda, o que há por trás das cortinas que balançam por longo tempo logo no início do filme) me aciona essa experiência do estrangeiro que ocupa todo o filme. As estratégias de encenação do filme revisitam as memórias da realizadora como uma estrangeira de si, ao mesmo tempo em que o espectador procura rastros que tornem possível sua aproximação com o misterioso universo do filme.

Nessa busca poética, penso em ecos ou diálogos de cineastas como Agnès Varda, Marguerite Duras e Chantal Akerman. Vejo O canto das amapolas como uma espécie de Là-bas e No home movie de Paula Gaitán, mas, claro, com seu estilo inconfundível, que dá continuidade a uma pesquisa de muitas décadas no cinema.

Acho muito bonito que o prêmio da Mostra Olhos Livres, oferecido pelo Júri Jovem, tenha ido para Gaitán. Pois há raras realizadoras no Brasil de hoje que perseguem uma pesquisa consistente e perene em torno da liberdade do cinema, e poucas veteranas permanecem com tamanho desejo de se conectar com uma geração jovem quanto Paula.

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