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Festivais

27º Tiradentes (2024) – Seu Cavalcanti

As aventuras de Seu (do nosso) Cavalcanti

Por Luiz Joaquim | 26.01.2024 (sexta-feira)

Hoje (26), a noite da 27º Mostra de Cinema de Tiradentes é de Pernambuco. A Cine-Tenda, principal palco de lançamentos daquele evento, com seus mais de 700 lugares, está dando espaço nesse momento, às 18h, à primeira exibição de Seu Cavalcanti, o segundo longa-metragem com direção assinada por Leonardo Lacca após Permanência (2014). Depois, às 22h, o mesmo espaço apresenta ao mundo Eros, doc. de Rachel Daisy Ellis, no programa competitivo Aurora, o principal da Mostra.

Imagem de “Eros”

Conforme diz sua sinopse, Eros “acessa a intimidade vivenciada na maior instituição de sexo do Brasil: o motel. Pessoas frequentadoras foram convidadas a se filmar durante uma noite e compartilhar os seus vídeos para fazer parte de um filme…”

Seu Cavalcanti exibe como parte do programa Olhos livres que, nas palavras de seus curadores Francis Vogner, Juliano Gomes, Tatiana Carvalho Costa e Rubens Fabrício Anzolin, é sobre um “cinema que se expressa por uma mistura de amplitude e imprevisibilidade”.

É bom que seja assim, pois Seu Cavalcanti vai estar ao lado de outros filmes fortes, como o paranaense Foram os sussurros que me mataram, do crítico e realizador Arthur Tuoto, sobre a tensão e os delírios vividos por uma celebridade (na pele de Mel Lisboa) prestes a entrar em um reality show, enquanto passa dias confinada num quarto de hotel.

SEU CAVALCANTI – Ainda que o longa pernambucano soe como um documentário, não é propriamente esse o seu único terreno de caminhada. Mas antes de entrar neste cansado campo discursivo que busca caixinhas para guardar ideias, vale falar um pouco da trajetória desta produção cujos movimentos iniciais surgiram ainda em 2002.

O próprio Lacca, em seu filme, por uma narração em off na primeira pessoa, nos conta que confunde o início de sua atuação no cinema com o momento em que começou a gravar, há cerca de 20 anos, imagens de seu avô, o Cavalcanti do título.

Faz parte do entendimento do espectador, durante a fruição do filme, compreender pelo próprio Lacca, que um volume tão gigantesco de arquivo audiovisual, acumulado por duas décadas com  registros efetivamente documentais, cenas ficcionais, edição, dublagens e efeitos especiais seriam por si só uma pesadelo para qualquer realizador. Como resolver nesse colossal material bruto tantos sentidos, em termos visuais e narrativos, no tempo de um longa-metragem? E para dizer o que?

Como se não bastasse, Lacca está falando de seu avô, uma parte cara de sua própria vida. E não há nada no mundo mais complexo do que falar de si próprio.

Num exercício extraordinário de fusão entre dramaturgia, que parece não se levar a sério (e, por isso mesmo, divertido) com registros documentais e auto-reflexivos sobre quem é o próprio Lacca nesse relação com o seu avô-pai-irmão (e, por isso, belamente se levando a sério), Seu Cavalcanti resulta na apresentação desse nonagenário que poderia ser o meu, o seu, o nosso avô.

Desfrutando uma das alegrias do dia: o whiskinho… bom pro coração.

Cavalcanti, com a sua cara de poucos amigos, com seu silêncio, suas trelas, desejos e xingamentos (“ORA CEBOLA!”, grita quando colérico) em seu universal e limitado campo de atuação – o da velhice extrema (acima dos 90 anos) – vive em conflito com a sua excelente saúde. “Coração de menino de 20 anos” conforme lhe diz o médico fora do enquadramento de Pedro Sotero, que coassina a fotografia com Lacca.

É a partir desse conflito, energia juvenil VS imposições contra o campo de atuação do ancião, que Lacca funde o seu real cotidiano, o dele e o do avô, com a ficticia aventura de resgatar a liberdade de Cavalcanti representada pelo Uno Mille Eletronic do protagonista.

É com o maltratado carrinho que Cavalcanti pode dar suas escapadas de casa, onde vive com as filhas Isabel e Tereza, mãe de Leo, para, em segredo, encontrar a 60 anos mais jovem, recatada e carinhosa namorada (Maeve Jinkings, se divertindo).

Seu Cavalcanti e a carinhosa namorada (Jinkings)

Sem estimular pré-julgamentos, Lacca vai nos inserindo na divertida aventura de Cavalcanti mas não sem também propor uma complexidade moral na forma de uma revelação para a família com Cavalcanti já não mais vivendo neste plano. É quando entra nessa brincadeira a atriz potiguar Tânia Maria (Bacurau) entregando um novo elemento dramático (e também humorado!) ao luto de Tereza e Isabel.

Da tensão inicial promovida pela novidade, a sequência familiar segue para o reconhecimento entre si dessas mulheres atreladas pelo melhor da memória de Cavalcanti. Memória, a essa altura, lindamente simbolizada pelo abandonado Uno Mille Eletronic, cercado de capim crescendo sob ele depois da morte do seu dono.

E, tal qual Temporada, de André Novais Oliveira, Lacca nos dá aqui a imagem de um carro velho (tal qual o filme mineiro, também um Uno) sendo empurrado para pegar no tranco por um coletivo unido por um elo comum: o esforço para seguir adiante.

É bom bonito.

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