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Críticas

O Deus do Cinema

Yôji Yamada acerta as contas com a história do cinema japonês

Por Humberto Silva | 16.07.2023 (domingo)

Há uma sentença atribuída a Jean-Luc Godard (nunca confirmei, talvez seja fake… quem sabe…): “originalidade é querer fazer como os outros e fracassar”. O Deus do Cinema (2021), de Yôji Yamada – em exibição na Sato Cinema em São Paulo, bairro da Liberdade, sala dedicada ao cinema asiático –, surpreende o espectador com mais estrada (infelizmente, talvez, não muito os jovens…) não exatamente pela falta de originalidade, pois cinema e padronização são quase sinônimos, mas por repetir fórmula facilmente reconhecida cuja refilmagem traria algo de paródia, ou de homenagem, pode ser.

O Deus do Cinema copia ideias motrizes de A Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Wood Allen, e Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore. Do primeiro, o personagem vai ao cinema e o personagem do filme assistido sai da tela para contracenar com ele. Do segundo, um flashback com as lembranças dos anos de formação do protagonista, fascinado pelo cinema. Yamada junta essas duas ideias para “contar a história” de um homem quase octogenário que, jovem, fez parte de importantes realizações do Estúdio Shochiku.

Goh Maruyama, octogenário, é alcóolatra, perseguido por agiotas, endividado, em crise no casamento, motivo de vergonha e desprezo da filha, tratado com desdém pelo neto. Sem perspectiva, viciado em apostas, vive mendigando trocados com quem vê pela frente. Depois de uma forte discussão com a esposa e a filha, que o colocam contra a parede, exigem que ele lhes entregue seus cartões de crédito e confiscam sua aposentadoria, Goh busca refúgio numa sala de cinema, de propriedade de um amigo dos tempos de juventude, Terashin. Eles assistem, então, a um filme do qual participaram da produção, Pétalas ao vento, dirigido por um aclamado diretor dos anos que vê surgir a nova onda do cinema japonês no final dos anos de 1950.

Com referências a Woody Allen e Giuseppe Tornatore, Yoji Yamada encontra sua própria voz.

Na sala de cinema começa o flashback. Goh, jovem, queria ser roteirista e diretor. Terashin, por sua vez, crítico ou dono de uma sala de cinema. Com o trânsito que tinha no Shochiku, Goh vê a possibilidade de filmar, escreve o roteiro de um filme, O Deus do Cinema, que, contudo, jamais foi filmado. O amigo, por seu turno, acabou se tornando dono da sala de cinema na qual se reencontram na velhice, e que está em decadência em razão da ausência de público nos tempos do streaming. Jovens apaixonados pelo cinema, ambos também se apaixonam pela mesma mulher, Yoshiko, que se casa com Goh. Yoshiko separa, então, os amigos que, casualmente, se reencontram quando já idosos.

O Deus do Cinema é um melodrama. Sua narrativa é previsível e segue os clichês do subgênero. É praticamente desnecessário privar o espectador de spoiler. Um happy end adocicá-lo-ia ao ponto do decepcionante. O desfecho com morte do protagonista é quase uma exigência para a condução da narrativa. O Deus do Cinema, com isso, é conduzido numa previsibilidade irritante. O ritmo, os arcos narrativos, a apresentação dos personagens, o flashback, o desfecho praticamente não perturbam a apreensão do espectador. Quer dizer, Yamada apela para a sensibilidade de um espectador que seja tocado por uma trama triste que envolve os sonhos, expectativas de jovens e o fracasso deles quando idosos: um desconhecido roteirista, um decadente dono de cinema e, entre eles, uma idosa que mantém o casamento porque não tem qualquer outro horizonte além da morte próxima.

“O Deus do Cinema” é uma espécie de reconciliação com a história do cinema japonês.

O flashback volta a ação para o final dos anos de 1950, certo? Momento em que o cinema japonês passou por grande efervescência com a nova onda (Noberu Bagu) que projetou nomes como Nagisa Oshima, Yoshishige Yoshida, Hiroshi Teshigahara, Shohei Imamura. Yôji Yamada, hoje nonagenário, fez parte da geração anterior, a de Yasujiru Ozu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse, que se projetou com a força e mentalidade do mais importante estúdio de cinema japonês, o Shochiku. No flashback, portanto, o momento de ruptura. Jovem, Goh, como Yamada, fez parte de uma geração que foi superada pela nova onda, a Noberu Bagu.

Realizado em 2022, O Deus do Cinema é algo como um acerto de contas com a história do cinema japonês. Cópia de A Rosa Púrpura do Cairo e de Cinema Paradiso? Parodia? Homenagem? Penso em subversão das ideias motrizes desses, sim, edulcorados filmes sobre o fetiche que o cinema provoca. Penso que em vez de cópia há em O Deus do Cinema um estranho anacronismo (estranho é pleonasmo: mostrar mostrando) que subverte, antecipa e influencia A Rosa Púrpura do Cairo e Cinema Paradiso. Querendo fazer como Wood Allen e Giuseppe Tornatore, Yamada fracassou, sendo assim original.

 

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