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Críticas

Nina

… “livremente inspirado” em Dostoiévski

Por Luiz Joaquim | 14.02.2023 (terça-feira)

texto originalmente publicado na Folha de Pernambuco em 20 de janeiro de 2005, quinta-feira, no caderno Programa

Nina acredita que os homens podem ser divididos em duas categorias: os ordinários e os extraordinários. O primeiro grupo são aqueles que pagam as contas em dia, obedecem leis e passam em ordem pela vida. O segundo grupo são aqueles que não conseguem viver sob regras, que têm o espírito livre para levar a vida como acham melhor, e fazem de tudo para conseguir o que precisam. Isso inclui matar outra pessoa. Mas a classificação não foi desenvolvida pelo personagem Nina, nem pelo seu criador Marçal Aquino e Heitor Dhalia, ambos roteirizaram (e este último dirigiu) o filme Nina (2004), que entra em cartaz amanhã [21/1/2005] no Box Guararapes [Nota do editor: Jaboatão dos Guararapes, PE].

A teoria classificatória é de Raskolnikóv, personagem principal de Crime e castigo, de Dostoiévski, que Dhalia “pegou emprestado” para dar partida nesse seu longa-metragem de estreia. Dhalia é pernambucano, mas ninguém espere algum sinal de ‘nordestiniceem Nina. O diretor radicou-se em São Paulo em 1993, onde trabalhou em importantes agências publicitárias. Em 2000, conseguiu concluir o curta Conceição, este sim, rodado em Recife, recheado de personalidades locais e dedicando um olhar sobre a padroeira da cidade.

O filme do pernambucano Heitor Dhalia cria atmosfera universal e atemporal.

Em seu longa, Dhalia busca, com a competente direção e arte de Akira Goto e Guta Carvalho, dar uma atmosfera universal e atemporal para o drama de Nina (Guta Stresser, de A grande família). A moça aluga um quarto no apartamento da velha Eunice (Myrian Muniz), que a massacra psicologicamente, ameaçando-a despejá-la se não cumprir suas dívidas. A humilhação continua quando Eunice coloca trancas na geladeira enquanto a faminta e desempregada Nina vaga por São Paulo em busca de ajuda.

A atriz Myriam Muniz, que faleceu há pouco mais de um mês, aos 73 anos, de derrame cerebral, consegue transcender, com sua Eunice, as limitações do roteiro. Já Stresser, pelo contrário, aparenta o mesmo sofrimento e desespero do começo ao fim do filme, o que não condiz com a intenção da história, que supostamente quer tragar o espectador para dentro da loucura em progressão de Nina.

Um belo artifício de Dhália foi intercalar a fotografia neutra e fria de José Roberto Eliezer com desenhos de Lourenço Mutarelli, escritor e quadrinista paulista bastante respeitado no meio. No filme, os traços de Mutarelli são de autoria de Nina, que coloca no papel sua perturbação mental enquanto se isola do mundo. As inserções animadas, inspiradas nos mangás japoneses, se encaixam nos momentos mais tensos do filme. Mas o talento de Mutarelli e de toda inspirada equipe técnica parece estar muito à frente da pretensão dramática que Dhalia e Aquino quiseram criar aqui, o que fica mais evidente na metade final do filme. Uma pena.

 

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