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Críticas

Creed III

O ringue como linguagem.

Por Yuri Lins | 01.03.2023 (quarta-feira)

No início de Creed III (EUA, 2023), o filme apresenta uma elipse de tempo que estabelece suas intenções. Inicialmente, a adolescência de Adonis Creed, o protagonista, e de seu amigo Damian é exposta enquanto dirigem pelo bairro em que vivem a caminho de uma luta de boxe, na qual Damian, um garoto prodígio do esporte, vencerá. Os planos-sequências imersivos capturam a atmosfera das ruas, com a sonoridade do rap e mostram de forma bela a maneira como as pessoas se reúnem nas calçadas, nas filas das boates ou assistindo ao combate. No entanto, em um momento que mancha a utopia, Adonis, até então tímido, comete um ato de violência e agride um homem em frente a um mercadinho. Embora seu gesto sugira uma relação pregressa entre os dois, o corte abrupto não deixa claro seu significado.

A elipse acontece neste instante, quando o filme passa dos golpes do jovem Adonis para o presente, onde ele está prestes a se aposentar após conquistar o mundo do boxe e construir uma vida próspera, tanto profissional quanto familiar. É neste momento que Damian (interpretado por Jonathan Majors) ressurge após cumprir uma pena de 18 anos. Durante todo esse tempo, ele assistiu de longe enquanto seu amigo se tornava uma estrela do esporte e construía uma vida que poderia ter sido a dele. Por outro lado, Adonis tentou apagar de sua memória tudo o que remetia aos traumas de sua infância, incluindo a amizade que compartilhava com Damian.

O salto no tempo suprime todo o processo de recalque por parte de Adonis e a gestação do ressentimento por parte de Damian. No entanto, o reencontro dos dois amigos é o catalisador daquilo que foi optado por esconder. Michael B. Jordan, que além de protagonizar também dirige o filme, consegue captar com destreza a tensão que se cria quando Adonis e Damian estão lado a lado no mesmo espaço. Há sempre um desconforto, um vazio que as palavras tentam preencher, mas que, após passado o momento, só evidenciam ainda mais o abismo que existe entre esses dois homens, que foram amigos no passado, mas cujas performances no presente dissimulam sentimentos mais ásperos.

Se uma elipse é algo que eclipsa uma determinada experiência, seus efeitos se fazem sentir nos corpos dos personagens. É nesse ponto que Creed III oferece seu ponto mais forte. Damien é interpretado por um excelente ator, possivelmente o melhor de sua geração. Jonathan Majors o compõe como um homem que não apenas emergiu de uma zona obscura eclipsada, mas também foi moldado por ela. Ele é um homem marcado por uma vida atrás das grades, forjado pela necessidade de sobrevivência, mas cujos olhos, cansados de testemunhar o irrepresentável, já não conseguem acompanhar a fúria latente sob a sua pele. Mesmo nas cenas de combate, onde toda a sua violência reprimida parece encontrar uma forma de expressão, há uma disjunção entre seus movimentos aguerridos e a forma como seus olhos se comportam: eles parecem petrificados por uma tristeza ora opaca, ora nostálgica. O que inquieta nesses olhos é a sua ambivalência em serem produtos máximos dessa violência, mas também resquícios de algo anterior a ela.

 A lacuna emocional compartilhada por Damian e Adonis é tão profunda que não há palavras para expressá-la. A ausência de 18 anos criou barreiras entre eles que só podem ser superadas no ringue. O combate corpo a corpo se torna o único meio de comunicação, uma vez que a linguagem tornou-se insuficiente. Jordan suspende o realismo das cenas e isola os personagens em uma dimensão própria, onde o público está ausente e só se ouvem os sons dos golpes e grunhidos. Esses resquícios de uma linguagem inacessível ao espectador, mas compreendida pelos lutadores, conferem uma dimensão espiritual à luta em Creed III. Nesse embate, a elipse ganha corpo e densidade, colidindo tudo aquilo que foi eclipsado ao longo dos anos de recalque.

Quase como uma purificação através da guerra, somente após o embate que Damian e Adonis conseguem ter uma conversa concreta, sem distrações ou mentiras. O verdadeiro clímax do filme não está na batalha final no ringue, mas sim no vestiário, logo em seguida, onde ambos finalmente chegam ao ponto de compreensão de que a fonte de seus traumas não era culpa de nenhum deles individualmente. Eles percebem que suas infâncias foram afetadas por forças maiores, como o abandono, a orfandade, os abusos sofridos e o racismo institucionalizado da sociedade americana, que condenou a uma vida de constante risco. Adonis consegue finalmente expressar seus sentimentos em palavras e Damian consegue acessar aquilo que seus olhos sempre anunciaram: um tempo mais antigo em que um simples passeio de carro pelo bairro encapsulava a imagem de um mundo perfeito.

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