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Festivais

38º Guadalajara (2023) – Mourir à Tue-tête

Precisamos falar sobre estupros

Por Ivonete Pinto | 09.06.2023 (sexta-feira)

O mínimo que se pode dizer deste filme de 1979, da diretora canadense do Quebec Anne Claire Poirier, é que se trata de algo terrivelmente perturbador. Para mulheres e homens, jovens e velhos. Exibido em sessão especial em Guadalajara, o doc-fic, pouco conhecido atualmente, tem circulado apenas entre os grupos feministas mais cinéfilos e, claro, militantes. Uma pena, pois deveria ser mostrado em escolas de ensino médio,  como todo filme que funciona no sentido de contribuir para que as próximas gerações não reproduzam violências e sejam, assim, melhores.  Passar um filme como este para adultos acaba tendo resultado quase pífio; adultos já estão meio perdidos mesmo. E é claro que na prática nem  seria possível. É violento demais, difícil de assistir, pessoas saem da sala nos primeiros minutos. 

O enredo: a diretora de um filme sobre um estupro discute com a montadora as imagens que devem entrar, o tempo de duração, o impacto que terão na audiência.

Nos primeiros 20 minutos  assistimos cenas com registro realista, mas através de enquadramentos e cortes conceitualmente feministas, um homem atacando uma mulher na rua. É noite e ele a arrasta para a carroceria fechada de um caminhão, onde pratica o estupro. As agressões físicas se somam aos insultos e a toda sorte de humilhação de gênero.

“Mourir à Tue-tête” pode ser utilizado como uma ferramenta pedagógica.

O estuprador, como todos estupradores, odeia mulheres. Os closes no rosto da vítima e do homem são quase insuportáveis. Diria-se, no entanto, que o pior está por vir: a violência a que a mulher é submetida na polícia quando precisa narrar em detalhes do estupro, é também um estupro. Bem como quando faz os exames e o médico  repete as mesmas perguntas. Sempre no ar, a ideia de que ela não deveria estar  sozinha à noite (a personagem é enfermeira e saía de seu turno no hospital). 

Um outro drama começa depois, com a mulher traumatizada, tendo que conviver com um medo que jamais a deixará. Com uma vergonha que não tem precedentes. 

Se foi difícil ler até aqui, saiba que o filme ainda traz uma cena com a ablação de uma criança (extirpação de clitóris, existente em alguns países ainda), através de imagem documental de arquivo. A diretora, também utilizando arquivos, faz conexões com a guerra do Vietnam, com o nazismo , etc., sugerindo que outras formas de estupro igualmente podem acontecer. 

Feminista avant-garde – Anne Claire Poirier tem 91 anos. Fez muito barulho décadas atrás e foi a primeira mulher a entrar no National Film Board, do Canadá. Mourir à Tue-tête é provavelmente seu filme mais conhecido, tendo sido exibido na televisão canadense, depois de passar por Cannes. O título, que em uma tradução aproximada pode ser “morrer gritando”, ou “morrer em alto e bom som”, ou ainda  “com toda força de sua voz”, dá conta de um grito que não sai no momento do estupro. Mas de um grito que precisa ser “gritado” para que o trauma seja amenizado e para lutar por uma sociedade menos sexista. 

A curadora da mostra Artistc Differences, em colaboração com Union Docs, que exibiu o filme no festival de Guadalajara, a portuguesa Cintia Gil, enfatizou a seguinte reflexão: qual a capacidade do cinema de demonstrar a dor? Como falar da dor na esfera pública? Estas questões permanecem com o público, assim como a certeza de que a sociedade precisa de um golpe de consciência. 

Em Mourir à Tue-tête , os closes são insuportáveis.

Este filme tem quase 45 anos e continua muito atual, apesar dos avanços, no Brasil, como a criação das delegacias da mulher. Elas, as delegacias, no entanto, não mudam uma cultura que é, em bom português, podre. As gerações se sucedem e as estatísticas de estupros seguem firmes. 

Chocante e necessário, Mourir à tue-tête deveria ser exibido, na impossibilidade de o ser em escolas, por óbvio, ao menos em cineclubes. Para você que lê este texto, o filme pode ser visto até o final deste mês na plataforma da Union Docs (https://uniondocs.org/). No dia 17 de junho haverá um debate online sobre ele através do mesmo endereço. Eventualmente, em algum site como NBC o título também pode ser encontrado. Faça um esforço e vá até o fim da projeção. Não é masoquismo, é golpe de consciência. 

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