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Críticas

A Alegria é a Prova dos Nove

A liberdade como motor para a criação artística e o empoderamento feminino

Por Humberto Silva | 20.05.2024 (segunda-feira)

Helena Ignez é impressionante. Fico estarrecido com a vitalidade dessa mulher, que ocupa a cena cinematográfica do país há mais de seis décadas. Começou como produtora não creditada e atriz em Pátio (1958), de Glauber Rocha. Nos vinte anos recentes, além da atriz que a torna uma lenda viva, enveredou para a direção. Com energia espantosa, suponho ser uma das mais profícuas diretoras que chegaram ao ofício sexagenárias. Vendo aqui o IMDb, dez filmes em duas décadas. É notável.

Seu projeto mais recente é A alegria é a prova dos nove, em que produz, dirige, protagoniza e assina o roteiro. Nesse projeto divide atenção com Ney Matogrosso. No filme há uma química bem bacana entre os dois. O encontro de duas personalidades marcantes de nossa cultura. A alegria…, com os dois, para quem acompanha o trajeto de Helena na direção, prepara o espectador para o que ela propõe: uma experiência transgressiva, referencial, alusiva e sintonizada com questões dos dias de hoje.

A alegria… gira em torno de dois assuntos: a liberdade em sentido amplo com o imperativo para a criação artística; a liberdade sexual como imperativo de empoderamento feminino. No primeiro, o foco para o uso da canabis, entendida como chave que abre as “portas da percepção”. No segundo a liberdade de a mulher dispor de seu corpo, num mundo que insiste na repressão sexual seis décadas depois da bandeira do amor livre.

Helena Ignez e Ney Matogrosso, ícones da arte transgressora brasileira e parceiros de muitas lutas, refletem sobre a necessidade de continuar lutando.

O filme, então, é pontuado pela passagem do tempo, pelo “espelhamento”, de gerações. Assim, nas entrelinhas, questões sobre a necessidade de militância depois do hasteamento de bandeiras no passado. Por isso, as conversas entre Jarda Ícone (Helena Ignez) e Lírio Terron (Ney Matogrosso) evocam um passado presente tanto quanto revelam o sentimento de que forças reacionárias os estimulam a manter em pé bandeiras de outrora.

Para um espectador desatento, A alegria… pode parecer caótico, sem rumo, ingenuamente anárquico, superficial no tratamento de temas delicados. Sendo assim, patina, chove no molhado, não vai além da presunção de abarcar os problemas do mundo. Não duvido que essa seja uma maneira de entender A alegria… Não passa de uma fita pouco à vontade com o tempo presente, que insiste na glorificação da geração desbunde dos anos de 1970, num espaço em que não dá um passo além do Cinema Marginal, do qual Helena foi “musa”.

Inegável, para mim, que a transgressiva Helena possa parecer pouco original, possa parecer excessivamente previsível. Os diálogos entre Jarda e Lírio podem soar constrangedores, de alguém que não se deu conta da passagem do tempo, de alguém que se recusa a ver que os tempos são outros. Para esse espectador, Helena (Jarda) e Ney (Lírio) não passariam de caricaturas grotescas, risíveis, de um passado que não mais existe.

Nisso, um tanto de ironia. As bandeiras levantadas, ainda, pelos dois não interessam a quem? Adjetivo como “caótico”, que pode ser colado em A alegria…, seria elogio ou esculhambação? Só para lembrar: “caos” remete justamente a título de filme de Rogério Sganzerla, epítome do Cinema Marginal, com quem Helena viveu por décadas e teve a filha Djin Sganzerla, que está em A alegria…

O mesmo indago sobre a expressão “sem rumo”. O mundo presente está bem com a graça de Deus nos devidos eixos? Não há nada caótico, como caóticos foram o tempo e a produção do Cinema marginal? Caso Helena optasse exclusivamente pelo caótico, pela ausência de rumo, seu filme não faria senão, com remanescentes da geração desbunde, exalar para mim o “aroma do tempo presente”.

O espectador desatento precisa perceber a mordacidade, ironia e desbunde nos propósitos de Helena Ignez,

Acontece que esse espectador desatento precisaria ter atenção para o quanto há de mordacidade, ironia, desbunde, nos propósitos de Helena. E o problema da desatenção para mim encobre uma camada subcutânea delicada: Helena é reconhecidamente atriz, foi casada com Glauber Rocha e depois com Sganzerla; a sombra deles a diminui antes mesmo que se veja um filme dirigido por ela. Ora, o que faria Helena Ignez senão “macaquear” o que, especificamente, foi feito por Sganzerla? Creio, tenho pra mim, esse um risco a não ser posto embaixo do tapete com a desatenção: Helena, assim entendo, tem voo próprio.

Entrementes, volto ao caótico. Se visto com devida atenção, A alegria… é caótico para quem espera do cinema fórmulas prontas, uma inteligibilidade que não perturbe aquele que vai ver um filme para se deleitar com historinhas “bem contadas”. Helena, e suponho isso seria minimamente esperado, não tem esse propósito. Tampouco, como alerta aos desatentos, A alegria… é uma obra caótica, sem rumo. E nisso o quinhão de mordacidade de Helena: exibir com ar de deboche, bem no espírito Cinema Marginal, um filme esquemático e incrivelmente didático.

A alegria… começa com uma conversa despretensiosa, leve, serena, repleta de reminiscências, entre Jarda e Lírio num barco no meio do mar. Daí então a exposição didática: Parte 1 – O amor distante; Parte 2 – Precisamos falar sobre nós; Parte 3 – Cada um tem seu jeito de dizer as coisas; Parte 4 – O que deixar para depois. São blocos, capítulos, atos, que seja, muito bem definidos. Não fazem senão com didatismo dizer ao espectador como ele deve acompanhar a… narrativa. Explicando o explicado: cabe ao espectador ver o filme e buscar sentido para “o amor distante”, “a necessidade de comunicação”, “a maneira como nos comunicamos” e, por fim “o que, agora, está fora de nosso alcance”.

De um filme caótico, sem rumo, eu não esperaria nada mais… didático: um esqueminha para ajudar, pois Helena quer que eu pense antes de ser assaltado pela precipitação. Há lacunas, falhas de sequência, imprecisões, incompletudes, superficialidades quanto ao enorme leque de questões que A alegria… aponta? Sim, as há. 

Helena Ignez faz um filme didático como um gesto irônico.

Fiquei encucado com a presença de dois “milicos” franquistas no oásis em Tamanrasset, no Marrocos. O ano da situação é preciso: 1977; ocorre que a ditadura franquista na Espanha, comandada por Francisco Franco, acabou em 1975. Erro? Não se percebeu isso? Desbunde, desleixo como princípio motivador do Cinema Marginal? Nesse sentido, entendo seria contrassenso esperar de Helena consulta a “especialistas” em história para que seu filme não contivesse, digamos, “imprecisão histórica”.

Ao fim e ao cabo, na imprecisão, na superficialidade, o que é, ou qual o sentido de um slogan? Para mim não é outro que não seja o de condensar uma mensagem. Aprofundar camadas implica corromper o propósito do slogan, de uma bandeira que é hasteada. Decididamente, Helena, transgressiva, levanta bandeiras. São às bandeiras erguidas que cabem reflexão no mundo presente, tendo o passado por alusão.

Sobre a profusão de slogans, ícones, símbolos, referências, alusões, eu pensei inicialmente em Jean-Luc Godard. Na porta de entrada do apartamento de Jarda Ícone (não gratuito, pois, o sobrenome) uma placa: Avenida Sônia Guajajara, liderança indígena global e guardiã do futuro. Na porta do banheiro outra placa: encontre o clitóris. Essas placas, tomadas isoladamente, valeriam uma “análise profunda”. Deixo a dica.

Mas, como num filme de Godard, as placas são índices, entre outros que inundam A alegria… Mário Bortolotto desfila com a imagem de Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, na camiseta. Uma pilha de livros com o livro Bolsonaro genocida é exibida sobre uma mesa. O livro Baderna – puta feminista, de Monique Prado, encontra-se sobre uma pilha de livros numa mesa de cabeceira. Na estante, um livro intitulado Luta pela floresta, o qual não identifiquei autor. O poeta Arthur Rimbaud e a feminista Betty Dodson são frequentemente citados.

‘A alegria…’ está repleto de slogans, ícones, símbolos e referências que convidam à reflexão sobre o mundo atual.

Pude notar, ainda, imagem de Jack Johnson, primeiro negro campeão peso pesado de box; do cubano Teófilo Stevenson, medalha de ouro olímpico, também boxeador e peso pesado, ao lado de Fidel Castro; ouvi menção ao padre Ticão, da Teologia da Libertação, que atuou durante a ditadura militar no Brasil; assim como ouvi a leitura de trechos de Morte e alteridade, do filósofo pop Byung Chu Han; pude ainda perceber a imagem de Lula num boton escondido no bolso interno do “mordomo” de Jarda. Isso tudo em meio à merchandising da Apple, Budweiser, Amber, Brahma e Antártica.

A respeito do “mordomo”, um tanto do quanto Helena exige do espectador. Ao receber lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, a contradição em que vivem Jarda e Lírio. São burgueses. Vivem numa bolha. Ressentidos, olham e discutem os problemas do mundo. Mas nesse mesmo mundo vivem bem, muito bem. Podem fazer viagens a lugares “exóticos” no Saara e manter um serviçal em casa para cuidar do cotidiano doméstico. Não é uma crítica tão velada à geração desbunde e à geração de hoje, entretanto talvez passe despercebida a quem vir A alegria… com desatenção.

Certo, e Godard, que ficou no meio do caminho? Penso ser impossível ignorar a presença dele em A alegria… Com ele, registro que no apartamento de Jarda há uma imagem de As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda. Nessa imagem, em Varda, portanto mais que Godard ou mesmo o Cinema Marginal, o sentido latente de A alegria é a prova dos nove. O cinema feito por uma mulher que prima em perscrutar os amplos espaços de uma praia frente aos desafios do mar.

A praia é o lugar seguro, zona de conforto. Nela o “mordomo” se insere bem em sua contradição. Ao se lançar para o mar, para Tamanrasset, o infortúnio no encontro com “milicos franquistas”. Nesse movimento, os desafios de cada geração, os perigos e contradições com que cada uma se defronta. A “prova dos nove” exige esforço, e não respostas prontas.

Que viva Helena Ignez.

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