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Críticas

Margem

O espaço da ausência

Por Yuri Lins | 18.08.2023 (sexta-feira)

Margem (Bra, 2023) é um filme que aborda o tema do luto e suscita uma pergunta crucial: como o cinema pode, por meio de suas ferramentas, criar uma representação que não apenas reflita o sentimento de perda, mas também se converta em um veículo para a superação diante dessa experiência? Nos seus pouco mais de 13 minutos, não se antevê uma resposta definitiva; entretanto, é a partir desse dilema que se delineia o trajeto em que sentimentos são exorcizados e se desenha a força de suas imagens.

O filme traça a trajetória de um homem, interpretado por Domingos Antonio – que também assina a co-direção -, em sua busca por superação enquanto enfrenta o luto pela morte de seu enteado. A narrativa entrelaça os fios dessa jornada pessoal com as consequências experimentadas pela população brasileira durante a crise da Covid-19, tendo como pano de fundo a liderança desumana de Jair Bolsonaro.

Antonio parece um copo deslocado nos espaços por onde passa.

Sob a direção dos cineastas Domingos Antônio e Flávio Ermírio Margem, o filme toma forma como um todo, onde as imagens, imbuídas de suntuosidade, são balizadas pela narração de um texto que reflete entre a rememoração do ausente e a revolta pelo crime do presente. E no centro da composição visual, descansa o corpo letárgico do protagonista, que se esforça para habitar o mundo, apesar do sentimento paralisante que o acompanha.

Margem se constrói a partir da relação irreconciliável entre o íntimo e o coletivo, o particular e o universal . Todo o seu regime de encenação busca dar conta dessa relação: Domingos, quando a câmera o capta de modo aproximado,  sempre reflete um sentimento de estar deslocado nos ambientes que atravessa. Em outros momentos, ele é inserido em cenários mais amplos, onde sua presença se reduz diante de um mundo que, dada sua vastidão, parece insensível à sua dor.

Quando capturado à distância pela lente da câmera, Domingos se torna um diminuto elemento na imensidão do mundo.

Se o mundo é obra de Deus, isso também reflete o seu silêncio. Domingos explora espaços sacros, contemplando imagens de um céu inalcançável e de uma distante promessa de cura. Cada cena exposta nos afrescos das igrejas evocam um infinito que só encontra semelhança entre os mortais à dor da perda. O cinema, limitado por sua natureza material,  apenas vislumbra o índice desse infinito, assim como as palavras de clemência e expurgo de Domingos tão somente assinalam, na superfície da voz, uma dor profunda e incurável.

A partir desses espaços de ausência emerge a essência de Margem. Cada centímetro de seus planos evocam de forma concreta uma ausência.. Entre todas as suas imagens, talvez a mais bela seja a de um estádio de futebol vazio, onde Antônio compartilha com o espectador a sensação bruta daquele instante: seu primo, como em uma prece silenciosa, suplicando ao filho – então hospitalizado – para que direcionasse a sorte necessária ao time. O gol marcado, a efusão da conquista, o abraço entre primos – tudo isso se amalgama em uma plenitude experimentada no fugaz instante que antecipa a perda inevitável.  É essa imagem de plena felicidade que permanecerá como um contraste constante diante do vazio deixado pela ausência do ente querido, moldando cada momento e cada gesto dos que o amaram.

A pandemia de Covid-19 e os seus impactos na relação entre o particular e o universal.

Margem não oferece solução para o luto; seu propósito é sustentar a continuidade da vida, apesar das brechas deixadas pela perda. Antônio e sua dor, quando materializados através da matéria cinematográfica, criam uma espécie de mensagem lançada ao oceano, buscando alcançar aqueles que, da mesma forma, também são vítimas da injustiça da morte e da eternidade do amor. Se o silêncio divino prevalece, um filme ainda pode disseminar uma mensagem de conforto  para mais adiante.

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