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Críticas

O Menino e a Garça

Um filme de mestre

Por Yuri Lins | 21.02.2024 (quarta-feira)

Foi uma experiência interessante assistir ao O menino e a garça (Jap, 2023) na mesma semana em que o Cinema da Fundação, no Recife, promoveu uma mostra de cinema japonês clássico. A imersão nos filmes de Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, Heinosuke Gosho e outros permitiu-me perceber como esses diretores, no auge de suas carreiras, em obras como Contos da lua vaga, A rotina tem o seu encanto e De onde se avistam as chaminés, alcançaram um domínio pleno sobre seus materiais. A sobriedade cirúrgica desses filmes promove um arrebatamento que emana do equilíbrio total de sua estrutura. Cada sequência é harmonicamente composta, com ritmos internos cuidadosamente elaborados, sem qualquer disfunção ou aresta mal trabalhada; uma cristalinidade da forma que não sacrifica o mistério e a abstração – mas que, ao contrário, decorre inteiramente dela. Essa mesma impressão ecoa na nova animação de Hayao Miyazaki; uma sobriedade que não se rende às pirotecnias, ao sentimentalismo, e que torna a concentração sua matriz de poder, e a limitação, uma fonte de imaginação.

Uma prova dessa modéstia revela-se no modo como Miyazaki aborda o tema do luto e da necessidade de superá-lo, sem se render aos arroubos melodramáticos ou às lições de moral. O protagonista, o jovem Mahito, perde sua mãe durante a Segunda Guerra Mundial; o hospital onde ela trabalhava é bombardeado, e o rapaz, apesar da miudeza de seu corpo e idade, ao avistar as chamas à distância de sua casa, corre em direção à tragédia com todo o ímpeto de seu ser. Contudo, ele não consegue mudar o destino de sua mãe, e toda a explosão de sentimentos que o impeliu a correr para o fogo, o faz, posteriormente,  adquirir uma personalidade sorumbática, sempre polida, em que a tristeza e a raiva são dissimuladas sob a superfície de sua pele.

A perda que Mahito enfrentou provocou uma transformação em sua personalidade, tornando-o mais introspectivo.

A inflexibilidade com que Mahito se relaciona com o seu entorno serve como o meio pelo qual o filme rejeita uma abordagem didática dos altos e baixos da superação de uma perda. A vida continua e Mahito ganha uma nova configuração familiar. Seu pai casa-se novamente com a irmã de sua falecida esposa; ela está grávida e todos se mudam para uma casa no interior do país. Mahito não demonstra qualquer resistência à mudança, mas também não oferece qualquer abertura para as diversas gentilezas que sua madrasta faz para tentar uma aproximação. Ele continuamente se entrega a uma alienação contemplativa, a qual Miyazaki compõe em quadros amplos da deambulação do personagem pela paisagem natural dos arredores. Na trajetória de Mahito, há um vazio palpável, uma melancolia que permeia seus gestos e oculta a irreconciliação de sua alma. Tudo parece caótico, mas o que se percebe é apenas a taciturnidade de seu corpo, o endurecimento de seu olhar e o silêncio que revela pouco sobre as paisagens interiores que o habitam. 

Nas discussões teóricas sobre cinema e realismo, é comum surgir o questionamento sobre se as animações devem ser de fato consideradas parte do cinema ou se representam uma forma de arte independente. Argumenta-se que os desenhos animados, por não serem compostos pelas fatias da realidade capturadas por uma câmera, careceriam da essência que conferiu ao cinema sua distinção em relação às outras formas artísticas. No entanto, essa é uma falsa questão; restringir o cinema ao realismo seria não apenas excluir as animações, mas também deixar de lado toda uma tradição de vanguarda que sempre buscou experimentar novas formas de representação cinematográfica para além da absorção do tangível e da conformidade narrativa. Mesmo tendo o realismo como régua, é verdadeiramente impressionante como Miyazaki recria o efeito do vento sobre a relva ou nas árvores, a sua paciência para delinear o fluxo das águas, a luminosidade do sol, bem como mantém os ouvidos aguçados para a calma sonoridade da natureza. Ainda que suas imagens não sejam testemunhas materiais do nosso mundo em constante decomposição, seus traços e tintas ainda assim permitem uma recomposição elegíaca daquilo que se perde.

Miyazaki dedica-se pacientemente à representação da natureza, entrelaçando nela a dor do protagonista.

Contudo, a contenção transborda. Talvez na cena mais chocante do filme, Mahito, em uma de suas deambulações, pega uma pedra e golpeia a própria cabeça. O gesto de infligir dor a si mesmo ora parece querer silenciar a turbulência interna, ora demonstra que há questões que não podem ser reprimidas indefinidamente. E é justamente desse vetor que o filme adentrará no terreno do fantástico. Enquanto Mahito se aliena nos domínios da casa, acaba sendo atraído e confrontado por uma estranha garça – uma criatura híbrida entre ave e homem – que o conduz até as ruínas de uma torre nos confins da propriedade. Mais ainda, descobre que seu antepassado, um bisavô, atua como guardião desse elo entre os mundos e almeja transferir essa responsabilidade para ele, seu herdeiro natural. Mahito recusa a oferta, mas, quando sua madrasta é raptada pela garça e levada para dentro da torre, onde se perde nas dimensões caleidoscópicas da pura fantasia, ele se vê diante do chamado da aventura. Apesar das questões não resolvidas que ele tem com sua nova madrasta, Mahito age sem hesitar, adentrando a torre para salvá-la.

Miyazaki tece a sua dimensão fantástica por meio da correspondência entre elementos da realidade cotidiana de Mahito e do mundo mágico que ele adentra: os riachos da casa se metamorfoseiam em um vasto oceano, onde navios expandem suas velas; aqueles que ainda não encontraram a vida são representados como alminhas flutuantes no ar, prontas para se tornarem seres vivos, mas também vulneráveis às garças famintas; os passarinhos assumem a forma de periquitos gigantes coloridos, formando um exército liderado por seu próprio rei; as velhas empregadas da casa de Mahito e sua família, ao atravessarem o portal mágico, se transmutam ora em amuletos da sorte de madeira, ora em jovens aventureiras habilidosas; até mesmo a mãe de Mahito, cuja morte, já sabemos, foi causada pelas chamas da guerra, passa a existir como uma criança cujo poder está precisamente no domínio do fogo.  A analogia é evidente: em O menino e a garça a fantasia reflete precisamente os sentimentos de Mahito, seus medos e desejos, a vontade de escapar para longe, ao mesmo tempo em que anseia por voltar a uma época mais simples, lúdica, de uma infância que lhe foi roubada pelas contendas dos adultos. 

No mundo mágico concebido por Miyazaki, o protagonista é confrontado com uma escolha crucial: permanecer afundado na dor de seu trauma ou enfrentá-la de frente.

Se a vida cotidiana de Mahito era caracterizada pela recusa ao afeto e pela imersão na alienação através das paisagens que lhe eram permitidas (o bosque, o quarto), onde cada espaço era permeado pela perda de sua inocência, no mundo da fantasia essa ausência se transforma na própria substância que constitui sua física. No entanto, não se trata simplesmente de reiterar a lacuna deixada; ao contrário, é a saudade profundamente sentida que vem a edificar no vazio um universo repleto de cores, sons e fúria, de aventuras capazes de calar, ao menos durante uma fração de liberdade, toda a tragédia que há na vida; e o trágico, sabemos, sempre permanecerá como a substância que fundamenta a realidade, de tudo o que nela nasce, sonha e morre.

Ao narrar a jornada de Mahito, Miyazaki evita transformar cada obstáculo enfrentado pelo personagem em um momento de epifania ou superação emocional. Apesar disso, a profundidade da jornada é absorvida pelo público. Se a aventura representa a amplificação do que Mahito já possui em si mesmo, a fantasia é, por si só, a máxima representação dos seus caminhos e descaminhos sentimentais,  algo que dispensa explicações adicionais sobre as suas ebulições ao encarar a si mesmo. Mahito permanece firme em suas personalidade e gestos austeros, e ao construí-lo assim, Miyazaki transforma os raros momentos em que essa contenção é quebrada em momentos sublimes do filme: um rápido sorriso ao contemplar as alminhas flutuando pelo céu, um olhar fascinado para os veleiros no mar e um afetuoso abraço de despedida para sua mãe, transformada em uma criança, que não carrega o peso de mais uma cisão pela morte, mas sim o gesto enternecido de aventureiros que se separam para seguirem em odisseias distintas.  Limitação, contenção, concisão, sobriedade: quanto menos expressividade uma obra utiliza, maior é seu poder de emocionar. E essa é uma lição que o grande cinema tem a oferecer.

Em ‘O Menino e a Garça’, encontrar a paz consigo mesmo é viver uma aventura.

Volto aos mestres. Mizoguchi, em uma entrevista, ao ser questionado se admirava o cinema de Ozu, prontamente respondeu que sim, destacando que o trabalho de Ozu era muito mais desafiador que o seu próprio, pois consistia essencialmente em filmar portas. Mizoguchi, conhecido pelos rios enevoados que sussurram o horror de uma época e por fantasmas de rostos belos e jovens, via na imagem de uma porta um fascínio maior. O que ele queria dizer com isso? Ozu,  realizador que colocava a câmera ao chão para mirar a grandeza dos homens e mulheres, escavava na superfície de uma porta toda a  profundidade histórica, social e até mesmo metafísica de seu tempo. Essa anedota ecoa em O menino e a garça.

 Miyazaki parece conjugar os pólos desses dois colossos do cinema japonês. Apesar de criar mundos de sonhos, ele o faz com a mesma simplicidade de quem observa uma porta. Sua fantasia permanece nesse equilíbrio, não exatamente entre realidade e sonho, concreto e abstrato, mas entre as inúmeras possibilidades da imaginação – e, consequentemente, do que a técnica da animação oferece ao criador – e a necessidade de ser o mais íntimo possível, uma intimidade que só se consegue com muita parcimônia, porém, sem qualquer sacrifício. 

Hayao Miyazaki. Um mestre, enfim.

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