
29º Cine-PE (2025) – A Melhor Mãe do Mundo
Amor, seus sabores e dores, atraso, chuva e Arranjos Regionais na abertura do festival recifense
Por Luiz Joaquim | 11.06.2025 (quarta-feira)

– acima, em foto de Luiz Joaquim, equipe de A melhor mãe do mundo apresenta o filme no palco do Teatro do Parque.
O mundo que vivemos, neste 2025, é o das imagens mediadas. E, cada vez mais, elas transbordam incessantemente pelos onipresentes dispositivos de tela brilhante. De modo que, criar imagens que não apenas perpassem indiferentes pela nossa retina mas que também impregnem nossos pensamentos pela sua beleza plástica, combinadas a sua capacidade de nos fazer refletir por meio de sua composição estética, é algo que só grandes cineastas alcançam.
Anna Muylaert é uma dessas aqui no Brasil. Em seu mais recente trabalho, Mãe só há uma – que abriu o 29º Cine-PE: Festival do Audiovisual, no Teatro do Parque aqui no Recife, na noite da segunda-feira (9) -, ela fez acontecer algo assim, no campo do encantamento.
Aconteceu quando vemos, já como um símbolo de libertação, de expurgo ou purificação contra a opressão e a violência machista, o banho de chuveiro de Gal (extraordinariamente vivida por Shirley Cruz).
Silenciosa, ou melhor, coberta pelo som da água que molha o corpo de Gal, a imagem reina em sua eloquência. Nos apresenta a protagonista totalmente nua sob o chuveiro com o seu corpo emoldurado por uma luz que reafirma, pela beleza, a dignidade que aquela mulher merece. São composições como estas que marcam um filme para sempre.
Em A melhor mãe do mundo, ela é um caso isolado pois, ao longo de seus 105 minutos, o roteiro e a boa direção de Muylaert priorizam diálogos e planos mais tradicionais e funcionais para desdobrar a narrativa que dará conta da trajetória dessa catadora de material reciclável, em São Paulo, que é Gal.
Após mais um episódio de violência física promovido pelo companheiro Leandro (Seu Jorge), Gal decide tirar a filha de 9 anos e o filho de 5, frutos de outra relação, da casa de Leandro. Ela cruza a capital paulista com os filhotes na garupa de sua carroça em direção à Itaquera, na zona leste da cidade. Vai atrás de um abrigo temporário na casa da prima.

Gal (Shirley) e a luta pela felicidade dos filhos
Tal qual Guido (Roberto Benigni em A vida é bela, guardando as devidas proporções, claro) Gal segue o caminho inventando brincadeiras e distraindo os pequenos da dureza de viverem como sem-teto até chegar ao seu destino.
Mas não faz tudo isso sem antes de prestar queixa na delegacia. Seu depoimento é na verdade o prólogo do filme. Funciona também como um cartão de apresentação para o que virá ao espectador: o gigante talento de Shirley Cruz.
Com seus olhos grandes, fortes, Shirley empresta a sua Gal uma personalidade e trejeitos muito bem estruturados, raros de se ver no cinema brasileiro. Desde a forma de falar, repetindo nervosamente o que seu interlocutor diz, enquanto gesticula rápido a cabeça pro lados, até o seu tique nervoso de passar a mão no cabelo incessantemente conforme a temperatura de seu desespero.
São marcas criativas, corporais que, se fora da dosagem precisa, tal qual um medicamente, podem funcionar como um veneno e não como uma solução. Graças ao talento de Shirley o que público ganha com a sua Gal é cura pela boa arte.
Destaque ainda para a presença do pernambucano Rubens Santos (o motorista de Uber em Retratos fantasmas. Ele também aparece no, hoje em cartaz, Manas, de Mariana Brennand). Rubens surge no filme de Muylaert como o marido da prima de Gal. Atua como o escape cômico da história. Rubens é um ator que parece vestir bem qualquer personagem que lhe chegue. É um nome que certamente conquistará mais e mais espaço no cinema brasileiro.
A melhor mãe do mundo exibiu no Festival de Berlim, em fevereiro último, e chega ao circuito exibidor brasileiro no mês de agosto.

Seu Jorge como o violento Leandro, ao lado de Shirley como Gal
CINE-PE – Assim começou bem o 29º Cine-PE, ou melhor, ‘bem’ em termos, porque a projeção de A melhor mãe do mundo iniciou quase às 23h para uma plateia que havia chegado ao Teatro do Parque antes das 19h. Do ponto de vista técnico a projeção de A melhor mãe… também não foi a ideal, conforme adiantou a cerimonialista do festival, a atriz Nínive Caldas – que, a propósito, se saiu bem com os imprevistos da noite.
Ainda que projetado com boa resolução, o filme não foi apresentado na dimensão correta de seu formato, jogando na tela imagens mais largas que a dimensão real. O som que chegou aos ouvidos da plateia, ainda que alto, claro e nítido, não contou com o sistema Dolby e o seu recurso surround na sala.
CURTAS – Antes do longa-metragem, os curtas Cavalo marinho (PE), de Léo Tabosa, e Liberdade sem conduta (RN), de Dênia Cruz, foram apresentados.
Léo, que na fala de apresentação não escondeu o seu descontentamento pela sala mais esvaziada em função do horário, mostrou Cavalo marinho pela primeira vez ao Recife. Com o novo trabalho, produzido por Bárbara Cariry e sob a luxuosa fotografia de Petrus Cariry, o cineasta nos leva ao interior do Nordeste na véspera dos festejos do São João. Lá conhecemos Francisca (Divina Valéria) que irá fazer uma revelação a um de seus filhos (Tuca Andrada).
O cinema de Léo Tabosa parece cada vez mais forte na capacidade de concentrar, em pouco tempo, uma densidade rica para o histórico dos personagens que cria. Aliado à fotografia aconchegante de Petrus e combinado à direção de arte preciosa de Sérgio Silveira, Cavalo marinho nos envolve com facilidade. Nos fazendo querer saber mais sobre aqueles na tela.
Talvez, apenas, coubesse em Cavalo marinho espaço de interação para mais personagens. Prova disso é a participação rápida da maravilhosa Soia Lira, como a irmã de Francisca que, com sua presença, empresta uma outra energia ao todo do filme.
Já Liberdade sem conduta documenta a real história de Amanda, cumprindo pena em regime aberto, pela condenação da morte de seu marido. Foi a condição que, como ela explica no filme, determinou a salvação de sua própria vida contra os abusos psicológicos e sexuais que sofria. O filme encontra boas soluções nas imagens que cobrem a narração bem articulada de Amanda para realçar mais uma vida massacrada pela opressão masculina.
Anteriormente, a programação exibiu na competitiva de curtas pernambucanos a ficção de Vitória Vasconcellos. Esconde esconde funciona inteiro pela perspectiva da câmera com a qual a jovem irmã que se diverte, enquanto visita com a família, a irmã mais velha em São Paulo. O que ela flagra pelo zoom da lente da câmera é o que move o filme. Vitória faz aqui um intrigante trabalho, propondo um estranhamento de som e imagem (em contraste aos tempos modernos em que vivemos, das super-resoluções em 8K), o que lembra um pouco em certo sentido, em termos de formato, o excelente Memórias externas de um mulher serrilhada (2011), de Eduardo Kishimoto, cuja sinopse diz “fragmentos digitais da intimidade de Josi”.

Alunos da escola pública de Jaboatão apresentam o curta “Eu Preciso Dizer que Te Amo”
Destaque também para a primeira projeção da noite, o filme-escola Eu preciso dizer que te amo, dirigido por Marlon Meirelles com estudantes da rede pública de Jaboatão dos Guararapes (PE). O documentário abriu o tema geral que definiu os filmes daquela data – o amor, seu sabores e dissabores -, só que de forma leve e divertida.
O esperado anúncio dos Arranjos Regionais do Fundo Setorial do Audiovisual (veja detalhes aqui), apresentada pela Ministra da Cultura, Margareth Menezes, só tomou início às 20h25. A mesa que compôs a cerimônia foi composta por oito autoridades políticas mais o diretor do festival, Alfredo Bertini.
Destaques para as falas da secretária do audiovisual Joelma Gonzaga, uma ferrenha entusiasta e apaixonada pelo cinema brasileiro, e para o prefeito do Recife, João Campos, que empenhou palavra em empregar aportes para os Arranjos Regionais e ainda reforçou o projeto da IFPE no prédio Trianon, garantido a integridade do Cine Art Palácio para futuras exibições de filmes.

Autoridades e o diretor do festival, à direita, no lançamento dos Arranjos Regionais do FSA
Ao final da noite, encerrada a exibição de A melhor mãe do mundo ali perto de 0h40 da madrugada de ontem (10), uma chuva intensa – ela, que acompanha fielmente o Cine-PE há mais de uma década – aguardava a plateia para acompanhá-la até em casa.
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