
Jean-Claude, o ator que fica
Ivonete Pinto escreve sobre Jean-Claude Bernardet: o teórico incansável, o ator apaixonado e o amigo fiel
Por Ivonete Pinto | 12.07.2025 (sábado)

Muito provavelmente os títulos dos necrológios sobre Jean-Claude Bernardet não tragam este título acima e falem mais do professor, teórico, polemizador. Ele adorava ser ator, sempre quis ser. O problema de visão o levou a atuar cada vez mais. E um ator não morre nunca. Claro que o grande teórico – com Ismail Xavier, é um dos maiores pensadores do cinema brasileiro – também será perpetuado através de seus escritos. Só que num mundo que lê tão pouco, é a imagem em movimento, em dezenas de filmes, que o torna eterno.
Fui sua última orientanda. Era 2003 e o que nos aproximou não foram meus dotes de pesquisadora, mas o tema em torno de Close-up, de Abbas Kiarostami.
Quando o diretor iraniano, morto em 2016, foi homenageado em uma Mostra de Sâo Paulo em 2004, Jean-Claude mediou uma mesa temática (sobre cinema digital, algo assim). Depois, Kiarostami, a quem eu procurei para falar de Close-up, acabou fazendo mais perguntas sobre Jean-Claude do que eu sobre o filme. Queria saber como ele era como professor, o que ele achava de Close-up, de Five, etc. Lembro que me faltaram palavras para definir Jean-Claude, então falei qualquer coisa sobre sua origem francesa e disse que era uma pessoa sui-generis.
Foi como um orientador sui-generis que convivi os quatro anos, que se seguiram a vários outros, já em diferentes projetos, incluindo um livro que organizei com Orlando Margarido para a Abraccine: “Bernardet 80 – Impacto e Influência no Cinema Brasileiro” (2017). Aliás, Jean-Claude foi um dos primeiros associados da entidade. Sempre cioso de seus deveres, mandava email perguntando se estava em dia com a anuidade. Também certa vez, nos primeiros anos da associação, me escreveu “denunciando” que havia um filiado no festival em que ele estava, que era também diretor de cinema. “No estatuto não diz que não pode ser diretor?”, perguntou. “É verdade, mas abrimos exceções para diretores de atuação esporádica, que estão mais para a pesquisa em torno das imagens do que para a bilheteria”, respondi. Ele aceitou.

Jean-Claude Bernardet durante entrevista à Revista Teorema, realizada em um domingo frio de junho de 2016.
Eu mesma acabei fazendo um curta sobre o projeto acadêmico originado do livro e intitulado “Bernardet, Jean-Claude”. O vídeo-ensaio, ou algo assim, disponível no Youtube aqui, tenta captar as diversas facetas do homenageado, priorizando sua atuação como ator, sem ignorar que ele foi um bom vendedor de livros. Organizando a publicação, me dei conta que “O que é Cinema”, da coleção Primeiros Passos da Brasiliense, era um best seller, com mais de 20 edições. Só não teve mais porque a editora fechou. E isto deixaria rico qualquer escritor em outro país, como EUA. Não foi seu caso.
Há um sem-fim de textos de e sobre Jean-Claude, compreendendo as autoficções, como “Wet Nódoa: Memória/Rapsódia”, em coautoria com Sabina Anzuategui, e entrevistas. Deixo aqui uma muito especial para os editores da Teorema, “O Crítico Reinventado”. Uma longa conversa com ele na minha casa, dia 5 de junho de 2016, um domingo muito frio, mas com um entrevistado muito falante. Ouvi o áudio agora e são mais de duas horas, falando sobre sua trajetória, suas teorias, sobre cinema brasileiro, sobre audiência, sobre ser ator.
Sua visão tinha piorado um pouco, mas exagerado que era, se dizia quase cego. Ainda durante o doutorado, ele pediu para que eu mandasse os textos em corpo 18. No celular ele conseguia ler aumentando as letras usando uma lupa, sua companheira.
Na época da entrevista à Teorema, ele recém havia feito a cirurgia da próstata, que não o livrou de uma metástase e que por sua vez o levou a uma decisão importante: não iria se submeter aos tratamentos cruéis que a indústria farmacêutica produz. Seu embate com esta indústria era público e notório, acusando-a de só visar o lucro. Alguém discorda? Ele até escreveu um livro a respeito, com o ótimo título “O corpo crítico” (2021).
Sem autocomiseração, a morte foi um tema para Jean-Claude, pelo menos desde que se descobriu soropositivo na década de 1990. Com um certo estoicismo, lançou um livro sobre sua relação com a Aids: “A Doença, Uma Experiência” (1996). Foi capa da Isto É e chocou o mundo acadêmico e a critica com sua exposição. Quando decidiu não fazer quimioterapia para tratar o câncer, deu entrevista para Mário Sérgio Conti da Globo News, e a quem mais se interessava, colocando os pingos nos is. Era midiático, raramente recusando entrevistas. Falava abertamente e com um grau de racionalidade que beirava à frieza. Seu jeito belga-francês de ser.

Capa de O que é o cinema, best-seller que abriu portas e despertou paixões para o estudo do cinema no Brasil.
Lembro que ainda no doutorado meu pai faleceu aos 71 anos. Eu disse a Jean-Claude que meu pai era muito jovem pra morrer. Com muita serenidade, ele retrucou que não, 71 era uma boa idade. Fiquei um tanto abismada, afinal ele próprio estava próximo desta idade.
A morte e as doenças eram temas que vez por outro entravam nas nossas conversas. Ele que convivia com isso há tanto tempo. Mas eu tinha medos. Durante as orientações, uma vez fui com ele fazer xerox de um livro. Saímos do edifício Copan e andamos umas duas quadras quando começou a chover. Na volta, chegamos encharcados e eu preocupadíssima de que ele pudesse pegar uma pneumonia. E isso, eu sabia, podia ser fatal. Outra vez estava em seu quarto, que era onde ele tinha o aparelho de DVD, assistindo a algum filme sobre a pesquisa. Eu estava gripada, mas me contorcia para não tossir ou espirrar. Imagina ser responsável por passar uma gripe que poderia evoluir!
Aos poucos fui entendendo que Jean-Claude não morreria destes efeitos. Ele era mais forte que qualquer um, pois sobreviver a tantas doenças e ter aquele corpinho de bailarino, tomar whisky quase todos os dias, francamente. Whisky foi um dos presentes que dei a ele, comprado no freeshop do Uruguai, quando de um festival da Fronteira, de Bagé. Mas o presente que ele mais gostou, acho, foi um pacote de pistache trazido do Irã. Ele estava justamente escrevendo o livro sobre Kiarostami (“Caminhos de Kiarostami”, 2004), então algo vindo direto do Irã o deixou meio encantado.
Mas sem arroubos, que ele não era disto. Como dito, sua quase frieza podia espantar. Uma única ocasião o vi bem emocionado. Ele contou a mim e a meu marido sobre uma vez, em um metrô no México, que uma jovem com quem viajava foi abusada (ele usou o termo “estuprada”). E ele, que estava junto, não pode fazer nada. Lágrimas nos olhos ao rememorar o episódio onde se viu tão impotente.
Roubei algumas imagens de Jean-Claude, depois confessei. Na mesma viagem a Bagé, o fotografei dormindo e acabei usando a foto no vídeo-ensaio. Já um vídeo feito sem que ele percebesse, feito na minha casa, mandei a Cristiano Burlan, fiel depositário das revelações de Jean-Claude. O cineasta estava gravando depoimentos dele, na condição de só divulgar depois de sua morte. Por incrível que pareça ela aconteceu hoje, culpa de um ordinário AVC, num 12 de julho qualquer de 2025.

Com Jean-Claude Bernardet, em um dos muitos momentos de troca, afeto e aprendizado que vivemos juntos.
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