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Festivais

29º Cine de Lima (2025) – Um Simples Acidente

Um simples acidente ou por que diabos Panahi resolveu fazer rir?

Por Ivonete Pinto | 10.08.2025 (domingo)

Não há quem não saia meio desnorteado depois de ver o mais recente filme de Jafar Panahi, Um simples acidente, exibido fora de competição na mostra “Aclamadas” no Festival de Cine de Lima. 70% comédia pastelão e 30% drama de vingança. Panahi, o cineasta iraniano mais perseguido pelo regime xiita fazendo comédia? E com um assunto desses?

Um resumo rápido: homem que esteve preso (Vahid Mobasseri), não se sabe a razão e não interessa saber, sequestra seu carcereiro-torturador (Ebrahim Azizi) para enterrá-lo vivo. Já jogando pás de terra no homem, fica em dúvida se realmente é a pessoa certa (o indicativo de uma perna mecânica não estava sendo confirmado).  Vai atrás de quem possa comprovar  a identidade do sujeito. Anda pela cidade com o cara amarrado em seu furgão até encontrar pessoas que também foram torturadas por ele. Uma noiva, uma fotógrafa de casamento e um amigo dela juntam-se no furgão e, confirmada a identidade, começam as discussões sobre o que fazer com o torturador enquanto circulam por Teerã.

Um simples acidente (Yek tasadef sadeh, 2025), é mais um dos filmes do diretor feito para não ser exibido no Irã. Seu objetivo são as plateias estrangeiras, os grandes festivais. O que é legítimo como escolha, afinal, ter que passar pelo rigoroso e patético sistema de censura do regime não é um bom negócio.

Só o fato de aparecerem mulheres com o cabelo à mostra já seria motivo para cortes. E mesmo a noiva, com seu vestido branco e uma tiara na cabeça, está fora das normas. Seriam situações até realistas, pois nos últimos anos algumas mulheres têm ousado tirar o véu em público. Vez que outra são presas por conta disso (lembremos do caso de Mahsa Amini, detida e morta durante os conflitos de 2022). Trazer isto num filme, nem pensar.  E, evidentemente, “torturador sádico em presídio” é tema que não se discute, muito menos que se filma.

Há na atual cinematografia iraniana quem tenha ido mais longe ao mostrar o “imostrável”, como  Ali Ahmadzade (Critical Zone) e Mohammad Rasoulof (Não há mal algum, A semente do fruto sagrado), entre os mais audazes. Ambos  premiados em Locarno, Berlim e Veneza. O primeiro não pode sair do Irã, o segundo, após um período na prisão, fugiu do país e hoje vive na Alemanha.

O caso de Panahi foi bem conhecido, tendo sido sentenciado a seis anos de prisão e 20 anos sem poder filmar. Ambas penalidade não cumpridas como se pensa. Panahi é estrela maior e o regime mais blefou do que atuou. Para a carreira de Panahi, sabe-se que  isto tudo se torna uma credencial importante para premiações em festivais. Ele já ganhou os principais prêmios na tríade Veneza-Berlim-Cannes e parece viver uma certa dependência da condição de censurado. Poderia estar morando fora, mas filmaria quais histórias? Mohsen Makhmalbaf, depois de perseguido, se perdeu no mundo e seu cinema não tem mais identidade. Panahi, por sua vez,  está num beco sem saído e faz filme atrás de filme às escondidas, sempre revelando os podres do país dos aiatolás. Sempre reunindo o que acontece por baixo dos panos. A lista com este mote é grande: O Círculo, Ouro Carmim,  Escondida, Fora de Jogo, Isto não é um filme, Cortinas fechadas, Táxi Teerã,  3 Faces, Sem Ursos.

Pois com Um simples acidente, vencedor do Festival de Cannes, Panahi tenta dar  prosseguimento à saga de diretor perseguido que não se rende. Mas comparado aos títulos citados, poderia ter sido filmado em qualquer país onde existem carrascos torturadores nas prisões. Filmes sobre o tema da vingança podem ser encontrados em filmografias desde a Coreia do Sul (a trilogia da vingança de Park Chan-wook), até o Brasil, com o Ação entre amigos, de Beto Brant. Naturalmente, são contextos particulares, mas o leitmotif é o mesmo.

Por isso, o tratamento do humor bastante escrachado pode arrancar gargalhadas do público, como na cena da “trupe”, incluindo a noiva, empurrando o furgão estragado pelas ruas em provável câmera escondida. E pode provocar o estranhamento com os 30% restantes do filme, onde acontece o confronto realmente sério entre torturado e  torturador. A sequência protagonizada pela personagem da fotógrafa (Maryam Afshari) é forte,  densa, de alta carga dramática e faz lembrar A Morte e a Donzela, de Roman Polanski (baseado na peça do dramaturgo Ariel Dorfman). A referência a este filme deveria ser suficiente para ilustrar o quanto a porção comédia do filme de Panahi soa deslocada. Como deslocado o Leão de Ouro em Cannes desbancando filmes superiores, como O agente secreto, de Kleber Mendonça. Mas deslocado para quem, cara pálida? Para a presidente daquele júri, Juliette Binoche, é que não.

Sobre o 29º Festival de Cine de Lima, leia também:

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