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Festivais

76º Locarno (2023) – Stepne e Critical Zone

A arte e a política

Por Ivonete Pinto | 21.08.2023 (segunda-feira)

Na imagem destacada, “Critical Zone”, de Ali Ahmadzade, grande vencedor do “Pardo d’oro”.

Locarno, como muitos dos grandes festivais, tem vários júris. Este artigo se detém no prêmio dado pela Fipresci* – Federação Internacional de Críticos de Cinema, e no Leopardo de Ouro, prêmio dado pelo júri oficial**. 

Pela composição destes júris, vê-se a diversidade cultural-geográfica do evento suíço e esta é uma marca que Locarno tenta investir. São filmes do mundo todo e nos últimos três anos, direcionados mais ainda às produções independentes. Meca do cinema indie e capital mundial do cinema de autor são definições que estão associadas ao festival.

A escolha da Fipresci pelo ucraniano Stepne, de Maryna Vroda, e do iraniano Critical Zone, de Ali Ahmadzade, pelo júri oficial, estão alinhadas a este perfil do festival. O que chamo a atenção aqui é que se o júri oficial claramente fez uma opção política, o júri da crítica, mesmo com o contexto da guerra na Ucrânia, não se pautou por ela. Em outras palavras: embora considerando que todo gesto é político, etc., etc., o filme ucraniano foi premiado pelo seu valor artístico, enquanto o  iraniano pelo seu valor político.

Melancolia e morte – “Não nos deixem desaparecer”, disse a diretora ucraniana Maryna Vroda ao receber o prêmio de melhor direção por Stepne no último festival de Locarno (único prêmio recebido pelo júri oficial). Coprodução com Alemanha, Polônia e Eslováquia, trata de uma outra guerra, não aquela travada contra a invasão russa. O filme, como projeto, iniciou-se há cerca de 10 anos, sendo interrompido por diversos motivos, muitos deles relacionados ao seu próprio tema. 

Em “Stepne”, a cineasta Maryna Vroda utiliza o minimalismo formal e o poder das entrelinhas para contar uma história de sobrevivência diante do avanço do capitalismo .

Stepne explora a vida dos que lutam pela sobrevivência em um vilarejo abandonado  pelos rumos da história. Filmado na região de Sumy Oblast, o roteiro da diretora e de Kirill Shuvalov carrega os ecos da dissolução da União Soviética, marcada por perdas, separações e a rápida transformação do país em um capitalismo destruidor. Condição esta que força os jovens a  mudarem-se para as cidades maiores e obriga os que ficam a vender suas terras para empresários inescrupulosos, situação que rende momentos grotescos e surrealistas até. Não há futuro para os velhos e a atmosfera de melancolia preenche todas as camadas do filme.

Maryna Vroda, em seu estreia  no longa metragem (ela foi premiada em Cannes com a Palma de Ouro pelo curta-metragem Cross, em 2011) imprime à narrativa uma tocante carga de sensibilidade poética. Nela, o enredo minimalista, a trilha musical discreta (Anton Baibakov) e a economia nos diálogos chamam a atenção. Especialmente os momentos  “não-dito” , que informam mais do que as palavras entre os personagens dos dois irmãos (Oleksandr Maksiakov e Oleg Primogenov) que, em idade avançada, voltam a se reunir após a morte da mãe. O irmão que ficou  nos últimos anos cuidando dela e do cão (igualmente idoso), representa o embate de uma cultura em desaparecimento. No limite, é a história de um país que desaparece.
O irmão que já tinha optado por morar longe dali para se dar bem no novo sistema econômico, está apenas interessado na venda da casa, assentada em terras que irão abrigar uma nova fábrica multinacional. Seu senso pragmático, inclusive em relação ao cão, pode chocar os espectadores, mas é aceito com resignação pelo irmão.

O avanço do capitalismo pós-soviético impõe aos personagens uma batalha para preservar suas raízes.

Todo este contexto, naturalmente, acaba sendo suplantado no campo extrafilmico pelo cenário da atual guerra, cujos primeiros conflitos datam ainda de 2014. Algumas pessoas da equipe morreram após a rodagem, enquanto  Maryna Vroda finalizava o filme, como o motorista e um assiste de set. A própria diretora, muito emocionada na cerimônia de premiação, perdeu familiares e mudou-se para a Alemanha. Portanto, a guerra está presente no filme de modo transverso, porém indissociável.

Vale mencionar que o romeno Radu Jude, que estava em Locarno com Do Not Expect Too Much of The End of The World (ver artigo no aqui) ao subir ao palco para agradecer ao prêmio especial do júri, e bem ao seu estilo debochado e contundente, proferiu palavras duras contra Vladimir Putin e provocou os suíços na casa deles. Ele disse que agradecia aos suíços, onde tem seu God (Godard) e pediu que eles, que estiveram ao lado de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial não ficassem ao lado de Putin agora, mas da Ucrânia. Ele não falou “Zelinski”, falou “Ucrânia“, o que faz muita diferença.

Assim, Stepne pode ser lido por vários ângulos, mas é importante frisar que os prêmios que recebeu no festival de Locarno, ao menos o da Fipresci,  tiveram um caráter para além da mensagem política, diferente do que aconteceu com o Leopardo de Ouro.
O prêmio da crítica, seguindo critérios menos pontuais e mais voltados à estética e à narrativa ─ i.e., a arte ─, destacou justamente o domínio da mise-en-scène e a capacidade da jovem diretora em abordar um tema que envolve não só a morte de pessoas, como a morte de uma época. Desta forma, o filme está no campo da memória sendo atemporal e mesmo universal. Aliás, o título Stepne (estepe, pradaria, pampa…) sugere algo entre deserto e floresta, morte e vida. A ver se consegue ser distribuído amplamente como merece. 

“Stepne” consegue sintetizar a mudança de uma época a partir de um olhar comedidamente direcionado às relações íntimas de seus personagens.

Critical prizeCritical Zone  (Mantagheye bohrani, algo como “lógica crítica”) é daqueles filmes feitos para causar fora do Irã. Jafar Panahi já fez isto e continua fazendo, porém seus filmes em geral têm densidade e trabalham  com inventividade a linguagem do cinema enquanto fazem denúncia. A questão de Critical Zone é que ao contentar-se com a ideia de chocar ao bater de frente com o regime xiita, esvazia o estatuto da arte e entrega apenas uma peça de antipropaganda. Seu propósito foi atingido: não conseguiu  do governo autorização para viajar à Suíça e transformou sua ausência no prêmio máximo do festival. O produtor do filme, que mora na Europa, tratou de fazer o discurso esperado.

Esta produção iraniana pode ser chamada de underground. Foi rodada  à noite por cenários com cara de submundo e mostra pessoas usando drogas. O personagem protagonista é um traficante da pesada, que não gera a menor empatia (ele de fato gera aversão, vendendo drogas para adolescentes). O leitor pode esquecer aquele típico cinema iraniano de Majid Majidi e Abbas Kiarostami, com crianças e a metalinguagem ligada ao cinema. De certa forma este é um ponto positivo, pois sinaliza que a filmografia iraniana também tem sua diversidade. Mas fica por aí.

No filme “Critical Zone”, o diretor Ali Ahmadzade busca impactar o público com cenas chocantes, porém, ao fazê-lo, acaba esvaziando as potencialidades da narrativa

Durante uma hora e meia, vemos  o traficante dirigindo pelas ruas de Teerã e consumindo drogas. Em uma cena noturna,  foge alucinado de alguém (polícia, outros traficantes?) tendo ao lado uma mulher que grita com o corpo para fora do carro: “Fuck you! Fuck you!”. Há uma evidente raiva que o filme quer comunicar com esta cena (bem longa, inclusive, para não deixar dúvida). Uma raiva ao regime opressor, podemos concluir, embora tudo soe aleatório. A cena e o filme como um todo não funciona porque não há contexto ao apenas rascunhar personagens surtados. O Irã não está ali. 

Ainda assim, a boa vontade nos pede um esforço para encarar o filme longe de padrões narrativos e mais próximo a uma alegoria. Entretanto, qualquer alegoria que se preze precisa de um propósito. Desde aquelas contidas nos filmes de Glauber Rocha até às  vistas em Alejandro Jodorowsky, ou mesmo em um Andrea Tonacci  de Bang Bang (para citar exemplos bem variados). Caso contrário, tudo é inócuo.
Percebe-se que vem se tornando uma estratégia usar as restrições do regime dos aiatolás para dar visibilidade aos filmes em  festivais importantes. O já citado Jafar Panahi, e mais recentemente  Mohammad Rasoulof, foram premiados algumas vezes a partir de motivação política (em Berlim, sobretudo). A diferença, reforço, é que seus filmes não se restringiam a somente sensibilizar plateias estrangeiras. 

“Critical Zone” se afasta dos filmes minimalistas e metalinguísticos comuns ao cinema iraniano, optando por imergir no mundo underground, habitado por personagens marginalizados

A produção de Critical Zone  submeteu um roteiro para autorização do governo  onde o tema principal – o explícito e onipresente uso de drogas –, teria sido subtraído. É compreensível e elogiável que Critical Zone tenha tentado enganar as autoridades com o objetivo de expressar o desespero que significa para a classe artística viver em um regime tão controlador e grite “fuck you!” durante 10 minutos. Porém resulta pouco defensável quando se sustenta exclusivamente em tática de marketing.  Um festival que seleciona Critical Zone o faz mais por cálculo do que por ingenuidade, e com isto leva seus jurados a cair em maniqueísmos sentimentais.  

*Ivonete Pinto (Brasil, presidente); David Katz (Inglaterra); Nada Azhari Gillon (França), Rasha Hosny (Egito) e Jean Perret (Suíça)

**Lambert Wilson (França, presidente); Zar Amir Ebrahimi (Irã); Lesli Klainberg (EUA); Charlotte Wells (Escócia/EUA); Matthijs Wouter Knol (Holanda)

 

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