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Críticas

Fim de Caso

Uma joia rara sobre o amor, feita em Hollywood, pelas mãos de Neil Jordan a partir de Graham Greene.

Por Luiz Joaquim | 03.04.2018 (terça-feira)

— publicado originalmente em 24 de Março de 2000 no Jornal do Commercio (Recife)

Todo ser humano possui ao menos um ponto de vista sobre tudo que o cerca. E essa perspectiva tende a ser tão dogmática na mesma proporção em que é sozinha. Fim de Caso (The End of The Affair, EUA, 1999), filme de Neil Jordan, que estréia hoje no Recife, conta uma belíssima história sobre a ausência de perspectivas, no plural, sobre a sinceridade que pode existir em um romance.

Quantas são as formas de amar? Inúmeras, alguém pode sugerir. E, realmente, aquele que sair de uma sessão desse filme (tido como extremamente bem adaptado da obra de Graham Greene) deve ficar tomado por uma substanciosa convicção de que as formas são inúmeras, e de que o amor, este sim, é um gênero único e absoluto.

Não é esse, entretanto, o objetivo de Jordan. Vê-se que não há apelo sentimental (no pior sentido da expressão) nessa segunda versão para o cinema de Fim de caso. Apesar da bela fotografia e bem cuidada ambientação de uma Inglaterra pós-guerra; apesar de comovente trilha sonora de Michael Nyman e da precisão interpretativa do elenco; apesar de todas as ferramentas presentes nessa obra, que abreviam o caminho para deixar um filme carregado de sacarose, Jordan foi de uma polidez eloquente e incisiva quando transpôs a história de Maurice Bendrix (Ralph Fiennes) para as telas. Ele fez aqui um produto raro na América: um filme maduro sobre sentimentos.

Bendrix é um novelista (o próprio Grahan Greene?) que está começando um texto pelas seguintes palavras: “Este é um diário de ódio”. Pela sua escrita, voltamos dois anos no tempo quando ele, em plena Segunda Grande Guerra, conhece o casal Henry (Stephen Rea) e Sarah (Julianne Moore). Até conhecer a esposa do amigo, o interesse do escritor em Henry era unicamente estudá-lo em sua profissão para compor um personagem do seu novo romance.

Na primeira oportunidade em que pode, Bendrix declara-se imediatamente apaixonado e inicia um caso com Sarah. Ela continua com o marido, acompanhando-o no matrimônio apenas como uma sombra acompanha o seu dono numa caminhada. Depois de um intenso, e bastante físico, relacionamento (no qual o novelista mede seu amor pelo tamanho do ciúme), Sarah encerra o affair com o desconfiado Bendrix sem que ele mal tenha tido tempo de se recuperar dos machucados provocados por um ataque aéreo ao prédio onde mora.

Consciencioso da força de várias perspectivas sobre um mesmo problema, Jordan é honesto o suficiente quando mostra a mais impactante e importante cena do filme duas vezes. A idéia, colocando as câmeras em pontos diferentes, era captar a reação separada de cada um dos atores e deixar o público fazer seu próprio julgamento sob o mesmo ponto de vista dos dois personagens.

De volta ao tempo presente, numa noite chuvosa, o novelista esbarra com Henry bastante desestruturado por acreditar que a esposa o está traindo. Bendrix, ainda curioso para entender a misteriosa opção de Sarah em por fim no caso de anos atrás, incita Henry a contratar um detetive para trazer a verdade sobre o novo amante da mulher. Só ai, pelos olhos desfocados de uma pessoa externa (o detetive), começa a jornada do escritor fazendo-o entender a dimensão do sincero sentimento que Sarah alimentava por ele.

Os três personagens criados por Grahan Greene são perfeitos para um romance. Ao seu modo, cada um expressa a mesma emoção de forma distinta. Henry tem consciência de sua patetice quando permite que a esposa tenha um amante. Ele não pode evitar. Quer mantê-la ao seu lado, mesmo que para isso precise dividi-la. Já Brendrix é dono de um amor egoísta, ciumento, furioso, esfomeado e destrutivo. Deseja Sarah por todos os instantes, como se uma vida inteira fosse insuficiente para os dois. A estúpida necessidade que sente pela constante presença física de Sarah ao seu lado não o faz enxergar o quanto é amado e dá-lhe um quadro distorcido do que ela tem a oferecer.

Sarah, por sua vez, simplesmente ama.. Dona de uma natural bondade e diferente de seu amante, ela acredita nas coisas que estão além dos olhos, vistas apenas pelo coração. Seu amor por Bendrix é, como diria Cazuza, uma “poesia de cego”, ele não pode ver. No final, o escritor aprende uma lição que o compele a reinterpretar a vida e a dobrar a bandeira obsessiva e possessiva que atribuía ao amor. Seu ceticismo é atingido em cheio e finalmente ele entende que é um bom novelista porque “falar sobre tristeza é muito fácil, mas, o que dizer da felicidade?”.

A primeira adaptação da obra de Greene foi para as telas em 55, pelas mãos de Edward Dmytryk, mas existe um consenso entre os críticos que a versão de Neil Jordan é melhor resolvida. O papel que é de Julianne Moore (candidata ao Oscar de melhor atriz) foi vivido por Deborah Kerr. Para essa nova adaptação, Jordan ainda cogitou utilizar Kristin Scott Thomas (par romântico de Fiennes em O paciente inglês) para interpretar Sarah. Quem viveu o romancista atormentado no passado foi Van Johnsen, e Peter Cushing estava na pele do marido traído. Fim de caso ainda compete pela estatueta de melhor fotografia no próximo domingo.

Não seria injusto dizer que a obra merecia estar no páreo pelo prêmio de roteiro adaptado e melhor direção. A coerência na condução de Jordan é evidente quando se observa que ele não subverte nenhum dos bons cartuchos que disponibilizou nessa produção (bons atores, boa música, boa fotografia, bom roteiro), em detrimento do filme como um todo. O que fica na cabeça ao sair da sala é a essência de mais um caso de amor. Uma bela história, tão bonita quanto tantas outras, mas, particularmente especial por ser bem contada e pela destacada sofisticação e sincera pujança dada ao item ‘o mais valioso sentimento humano’. Assim como Umberto Eco disse uma vez, Jordan parece querer enfatizar ao seu público que está na hora de voltarmos ao começo, perguntando uns aos outro o que está havendo.

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