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Festivais

22a Tiradentes (2019) – “Vermelha” e “Desvio”

Tivemos o mais improvável (e divertido) filme dos últimos anos exibido na “Aurora”.

Por Luiz Joaquim | 25.01.2019 (sexta-feira)

TIRADENTES (MG) – No penúltimo dia competitivo (ontem, 24) da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, tivemos, até agora, o melhor momento desta edição. Um pouco pela razão de um filme específico mostrado ali na quinta-feira – chamado Vermelha – ter sido mais intrigante do que qualquer outro anterior, mas também pela combinação encadeada no programa “Aurora” de ontem, que mostrou a seu espectador dois longas-metragens sendo, cada um deles, muito forte em suas propostas. Mais do que fortes, esteticamente sedutores, com um deles sendo mesmo apaixonante.

Como se não bastasse, são títulos oriundos de regiões de ainda pouca visibilidade sobre suas produções em longa-metragem. Mas, se considerarmos o goiano Vermelha, de Getúlio Ribeiro, e o paraibano Desvio, de Arthur Lins, deveríamos parar para prestar mais atenção ao que vem desses estados.

Ainda considerando o status da excitação generalizada por aqui entre ontem e hoje em função do que estes filmes nos deram – principalmente o Vermelha -, é válido reforçar que a Mostra de Tiradentes fez bem, muito bem, o seu principal dever de casa que é apresentar e jogar luz intelectual sobre novos talentos do atual cinema brasileiro.

VERMELHA – Temos aqui em Vermelha um forte indicado a vencer o troféu Barroco pelo “Aurora”. E essa vitória, por si só, soaria como um novo e bem vindo oxigênio temático a este programa que se propõe revelador.

Vermelha é, talvez, o mais improvável longa-metragem brasileiro recente realizado. Inteiramente sustentado por um humor difícil de traduzir, seu enredo não deixa trilhas para aonde está indo. Em debate hoje (25) pela manhã o crítico convidado a falar sobre o filme, o mineiro Ewerton Belico, ensaiou uma tentativa de mapear ou compreender esse humor.

É um humor que deriva da casualidade dos assuntos que os personagens colocam em primeiro plano, sendo esse ambiente uma casa suburbana em reforma e habitada pela família do diretor. Eles são seu eu pai, o Gaúcho (Osvaldo Marques), a irmã Débora Marques, sua mãe Maria Divina, e o melhor amigo de seu pai, Beto Mecânico. E há ainda Vermelha, a cadelinha da família.

Nesse sentido, uma primeira (e rasa) filiação que pode ser feita ao cinema de Getúlio Ribeiro é com o de André Novais Oliveira. Rasa porque afora esse elemento de integração familiar do realizador com seu elenco, e do ambiente em que vive como locação, temos cinemas distintos.

Não há, por exemplo, nem uma sinopse que se possa construir de maneira satisfatória para dar conta do que conhecemos no enredo de Vermelha. E por mais aleatório que possa parecer a maneira como as situações vão se sucedendo aqui, elas não são. Isto é algo que foi colocado em debate, hoje mais cedo, e ficou claro pela fala de Getúlio que, apesar da construção dramatúrgica desejada pelo realizador não excluir a ocasionalidade, ela também não abria mão de um desenho bem definido da intenção contida em cada cena realizada.

Para minimamente situarmos o leitor, podemos dizer que Vermelha apresenta um momento no cotidiano dessa família simples e simpática no subúrbio de Goiânia, com Gaúcho determinado a mudar a coberta da casa enquanto se esconde dos credores da vizinhança. Ao mesmo tempo, a transferência de um tronco de uma árvore morta, que vem do campo para esta casa, é bastante esperada pela família. Nesse ínterim, sabemos de Dona Divina, que passa por uma fisioterapia para tratar a perna, e tem sonhos peculiares, e que a filha Débora é frustrada com sua pintura. Há ainda a cadelinha Vermelha, cujo próprio filme impõe um lugar especial ao mostrar uma reportagem na tevê sobre o resgate de uma outra cadelinha em perigo.

Vermelha, o filme, estabelece muito rapidamente um vínculo entre espectador e personagens, e essa identificação acelera o interesse por tudo o que nos chega pelo filme. De forma naturalista, ma non troppo, acessamos aqui um retrato do Brasil tão fascinante e próxima ao real que ela, inclusive, pode ser lida como universal uma vez que é a relação familiar que está em primeiro plano. Mas não a “família da propaganda de margarina”, e sim aquela que conhecemos tão bem de nosso cotidiano e da realidade da vida.

Vermelha é vivo. Talvez essa seja a melhor definição para as suas proposições cinematográficas.

DESVIO –  Da Paraíba, com a dramatização acontecendo em Patos (município a quase 300 quilômetros de João Pessoa), Desvio, de Arthur Lins – ao contrário de Vermelha – fundamenta-se numa narrativa mais clássica. E isso não é para entendê-lo como menor porque Lins tem seu filme sob seu pulso o tempo inteiro. Sabe de onde parte e para onde vai com clareza. Clareza que chega fácil ao espectador.

Daniel Porpino em cena de “Desvio”

Sem nenhuma gordura dramática ou narrativa, Desvio acompanha o apenado Pedro (o preciso ator Daniel Porpino), em sua liberdade temporária pelo indulto de Natal. Fora do presídio, ele vai visitar a família nesta pequena cidade do Sertão. É um retorno que acontece cerca de nove anos após a prisão de Pedro, causada, aparentemente, pela morte de um amigo seu, envolvido em um acidente de carro.

No retorno a Patos, um personagem determinante aqui é o de Pâmela (Annie Chrissel), a prima dele, dez anos mais nova, ou algo próximo a isso, com quem Pedro compartilha o espírito libertário e a paixão pela cultura punk.

Como bem disse, da plateia, a montadora Cristina Amaral, em debate hoje pela manhã, Lins conseguiu aqui não psicologizar seus personagens, contemplando exatamente o que o diretor anunciara previamente, ou seja, o desejo de construir Pedro sem estabelecer questões de valor sobre sua figura.

Um aspecto do enredo ganhou especial cizânia no debate. Dizia respeito a um assalto em que Pedro se envolve durante o indulto. O que, para uns seria irresponsável apresentá-lo dessa forma em tempos de Brasil com política catersiana, ou bolsonariana (que dá no mesmo). Mas, mais uma vez, Cristininha Amaral interviu de maneira esclarecedora, apontando que o que se vê no filme não é o crime mas uma criminalização. Lins também ajudou contando que não lhe interessava um personagem que servisse de modelo regenerador.

Talvez a relação mais interessante e ser feita aqui seja mesmo a do encontro entre esses dois personagens, Pedro e Pâmera, separados por dois tempos (pela idade), pela condição social (com Pedro tendo um pena a cumprir e Pâmela com o mundo aberto a sua frente), e tendo os dois um elo inquebrável identificado pelo desdém ao status quo nesse mundo tão cheio de regras.

*Viagem a convite da Mostra.

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