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Festivais

8. Olhar (2019) – “Casa”

Três mulheres que habitam uma casa universal, cada uma a seu modo.

Por Luiz Joaquim | 08.06.2019 (sábado)

– Na foto acima, de Isabella Lanave, equipe de Casa em noite de estreia no Olhar de Cinema

CURITIBA (PR) – No carinhoso espaço que o 8o Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba ofereceu neste 2019 ao cinema brasileiro, entrou em cena a primeiríssima exibição de um projeto há anos sob gestação da diretora baiana Letícia Simões (de Bruta aventura em versos). Com o nome Casa, seu filme, projetado ontem (7), a coloca num outro ambiente dentro da cinematografia nacional.

Radicado no Recife há cerca de um ano e meio, Letícia contou com a produção da recifense Carnaval Filmes (de João Vieira Jr. e Nara Aragão, ambos presentes em Curitiba). Pelo que se comentou por aqui, o trabalho da Carnaval soou como o coroamento definidor dentro de um processo bastante longo que foi a construção desta Casa.

Seus alicerces foram levantados em um laboratório de cinema, pelo Porto das Artes (Fortaleza), tendo passado por um mestrado em Cuba até chegar na trilha, conduzida de mão dadas, ao lado da Carnaval.  Nessa trajetória, caminharam como consultores, ao lado de Leticia, Karin Aïnouz, Marcelo Gomes, Hilton Lacerda e Eduardo Valente – só para registrar alguns nomes fortes entre tantos outros.

Mas, ao final, Casa é mesmo um filme de Letícia. Seu conteúdo, o do filme, afirma isto de maneira explícita uma vez que na sua consistência reside a própria Letícia, sua mãe Heliana (com depressão) e a avó materna Carmelita (92 anos, num asilo) como protagonistas de um drama familiar o qual Casa nos apresenta aspectos de universalidade.

O filme registra a vivência de um reencontro entre três mulheres de gerações distintas e, entre atrações e atritos, Letícia desenha um retrato baseado na memória dessas três mulheres interligadas pelo elo sanguíneo.

Cartas trocadas entre Letícia e a mãe, lidas em off pela diretora por toda extensão do filme, acabam funcionando como uma agulha que liga os pontos cronológicos daquela relação. Relação tensa e amorosa, como em qualquer família, que parece ter seu ápice representativo no jantar de Natal, quando as três, reunidas no apartamento de Heliana, discutem seriamente por um motivo banal.

Tal momento também ressalta de maneira exemplar o que é o conflito próprio de um diretor(a) de cinema que resolve se expor também na frente da câmera, como coprotagonista da história que está contando. Nesta sequência, Letícia é a que “foge” do quadro, por não suportar mais o embate com a mãe, cuja presença em cena, vale ressaltar, é muito forte.

Um tipo de rejeição de Letícia pela cidade de Salvador também está presente no filme, mas é algo que parece surgir mais como uma sombra, ou um reflexo de algo maior vivido por ela naquela família.

O risco na elaboração de filmes como Casa é tornarem-se autocentrados num contexto muito pessoal. Letícia conseguiu driblar esse quesito (mas também não o nega). E, entre as estratégias que estabeleceu para dar o drible está a universalidade nata de situações familiares que se reflete em qualquer parte do mundo ocidental.

No campo do amor, temos, por exemplo, a cena em que Letícia se despede da avó. A neta vai passar seis meses estudando em Cuba, e não sabe quando verá Carmelita novamente. Num plano fixo temos Carmelita, em primeiro plano, se despedindo e abençoando a neta que, independente de sua crença e sofisticação para as coisas do mundo, recebe a tudo calada, respeitosa. Há algo de sagrado neste gesto dessas duas mulheres. É também universal, atemporal e absolutamente tocante em qualquer circunstância.

A personalidade da avó, cujo pragmatismo é próprio da sua geração; ou os conflitos da mãe (a personagem intermediária entre a avó e a neta) representam bem o que seria a transição entre o que foi o mundo de uma e o que é hoje o mundo da outra. Heliana quando jovem se preocupava em constituir uma família. O fez mas não exatamente como sonhou. Separou-se do marido com cerca de 20 anos de convivência. Letícia casou-se também, mas não demorou duas décadas para decidir cancelar não só seu casamento, mas também uma gestação – este último, algo impensável por Heliana.

As três mulheres servem, portanto, como uma espécie de régua comportamental no universo feminino destes últimos 70 anos.

Nessa espécie de árvore genealógica audiovisual composta por Letícia não poderiam faltar as figuras masculinas (avôs, pais, padrinhos, maridos). Tais figuras estão presentes pela memória das mulheres e, por isso, numa espécie de forma fantasmagórica, quase sempre como complicadores, e não solucionadores da família.

Para integrá-los sem demonizá-los nesta história essencialmente feminina, o montador Eduardo Chatagnier e Letícia se cercaram de cuidados para incluí-los apenas no necessário e apenas após Carmelita, Heliana e Letícia tornarem-se próximas o suficiente de seus espectadores. A essa altura, portanto, é com as três que estamos e é com as três que queremos estar.

Letícia Simões entra, portanto, num outro ambiente dentro da cinematografia nacional. E ela é bem-vinda.

* Viagem a convite do festival

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